A santa Nhá Chica é uma mestiça descendente do estupro colonial

Como prometi em “Nhá Chica é uma santa negra que nasceu escrava?” (O Tempo, 14/5/2013), fui a Baependi (MG) para ver a santa de perto. Desde maio, mergulhei no mundo da santinha de Baependi. Li dois livros sobre ela: “Nhá Chica, Mãe dos Pobres”, de Rita Elisa Seda (Editora ComDeus), e “Nhá Chica Perfume de Rosa”, de Gaetano Passarelli (Paulinas).

Entrevistei Osni Paiva, o escultor-santeiro de São João del Rei que esculpiu a imagem oficial de Nhá Chica, com policromia do artista Carlos Magno de Araújo, encomendada por dom Diamantino, bispo de Campanha (MG), com base na única foto dela existente, publicada no livro “Caxambu” (1894), do médico Henrique Monat, no capítulo “Entrevista com Nhá Chica”.

Osni Paiva afirmou: “Nhá Chica não era preta, era parda; logo, da raça negra”. Indagado se não se sentia constrangido de a Nhá dele ser diferente das imagens populares, que a apresentam como negra, disse que não, pois foi fiel aos traços da foto e à declaração do dr. Monat de que ela era “morena”, então “não fiz uma Nhá Chica branca!”.

Osni Paiva pode estar certo. Nhá Chica é a segunda geração de Nhá Roza de Benguela, escrava de Custodeo Ferreira Braga, provável pai de sua mãe, Izabel Maria, mestiça de preto com branco, que foi vendida para um membro da família Pereira do Amaral, com quem teve Maria Joaquina e Theotônio Pereira do Amaral, ambos registrados e criados pelo pai; após ter os filhos, foi alforriada pelo seu dono. Quando Nhá Chica nasceu (1808), sua mãe era uma mulher livre, que trabalhava para a família Alves, em Porteira dos Vilelas (Passarelli, 2013).

Trazidas para o
Brasil na condição
de trabalhadoras
escravas, as africanas
e suas descendentes
não eram donas de
seus corpos

Intrigava-me como uma ex-escrava sai de São João del Rei chega a Baependi e compra uma chácara. Compartilhei com Osni Paiva a indagação. Para ele, a resposta desvendaria a alforria de Izabel. Encontrei a história em “Nhá Chica Perfume de Rosa”. Theotônio e Maria Joaquina foram mandados, pelo pai, para Baependi, lugar próspero à época. A mãe acompanhou o filho. Enquanto o palacete dos filhos Pereira do Amaral era na principal rua da cidade, ela e Nhá Chica se acomodaram numa chácara, hoje rua da Conceição, 165, que dizem ter sido comprada com o auxílio do Amaral pai e do padrinho de Nhá Chica, Ângelo Alves, seu possível pai.

Em Baependi, Nhá Chica é uma sempre-viva, a flor imortal, no coração do povo. Falam dela como se estivesse viva! No santuário da Imaculada Conceição, erguido englobando a antiga igrejinha de Nhá Chica, onde ela está sepultada, ao lado ficam a casa de Nhá Chica e o Memorial Nhá Chica. A nova imagem de Nhá Chica, entronizada no santuário da Imaculada Conceição, é uma obra de arte de rara beleza; de fato, Osni Paiva não a fez branca. É parda. Logo, negra, embora não seja preta. População negra é o conjunto de pretos e pardos. Em conversas com romeiros e pessoas do lugar, quase 100% dizem preferir a Nhá Chica preta da imagem tradicional!

Elementar que Nhá Chica não seja preta. Sua avó e a mãe foram submetidas, pelos seus donos brancos, ao estupro colonial. Trazidas para o Brasil na condição de trabalhadoras escravas, vítimas do estupro colonial, as africanas e suas descendentes não eram donas de seus corpos. A possibilidade de decidir sobre o próprio corpo e o exercício livre da sexualidade é uma experiência muito nova para nós, negras; data de apenas 125 anos (1888, Lei Áurea).

Sair da condição de “objeto privado” não tem sido fácil, posto que os estereótipos sobre as mulheres negras são inúmeros, embora sejamos, biológica e culturalmente, um país mestiço.

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