“Caminho para Guantánamo”: Rota para o inferno

Unindo ficção e documentário, os ingleses Winterbottom e Whitecross denunciam o terror imposto pelos EUA no Afeganistão e nas prisões de sua base militar em Guantánamo, nas costas cubanas.

Uma das vantagens do documentário é, supostamente, estar vinculado à realidade, o que não significa afirmar que os fatos por ele mostrados são a pura verdade. Mesmo quando são diretos, a exemplo de “Corações e Mentes”, de Peter Davis, a montagem cuida de nos alertar de que se trata de uma visão do diretor. Isso quando sua filmagem não sofre a influência da ação política, caso de “Cabra Marcado para Morrer”, do brasileiro Eduardo Coutinho. Foram necessárias quase duas décadas para ele ser finalizado, devido aos eventos trágicos da ditadura militar. Eventos históricos, como a “guerra contra o terror” do Governo Bush, do complexo industrial-militar e do monopólio do petróleo, ditaram a feitura de “Caminho para Guantánamo”, dos britânicos Michael Winterbottom (“Nove Canções”) e Mat Whitecross, prêmio de melhor direção no Festival de Berlin de 2006. A dupla de diretores uniu a filmagem em locais reais, o Afeganistão e o Paquistão, à encenação da descida ao inferno de quatro jovens britânicos, de origem paquistanesa, que terminam confinados no campo de concentração norte-americano de Guantánamo, base militar ianque nas costas cubanas.



                   


Não fosse a carga explosiva do fato, “Caminho para Guantánamo” poderia cair na vala comum dos documentários que, a pretexto da denúncia, usam vários artifícios de filmes desse gênero. Dentre eles estão o uso de câmera na mão, oscilante, sem foco preciso e, principalmente, o sistema digital. As imagens, devido a isto ficam sem profundidade de campo, sujas, criando um clima de pesadelo. O que as diferenciam são os depoimentos das vítimas que traduzem a tragicidade dos acontecimentos. Essa mescla do real e do encenado é que dá, porém, a sensação de estar-se diante de fatos reais; documento de uma época em que os interesses de uma superpotência, os EUA, se sobrepõem aos dos demais países, principalmente, os do Oriente Médio e da Ásia muçulmana. Pouco importa, neste instante, as deficiências programadas do filme; o que conta é o que se vê, mesmo em estado precário e, por isso mesmo, mantém o interesse.


 


                    


Viagem turística acaba em pesadelo
                
                   


 


Winterbottom e Whitecross narram uma história comum, igual à de tantos jovens muçulmanos que seguem os preceitos de sua família e de sua religião. A mãe de Asif Iqbal (Afran Usman), de 19 anos, retorna do Paquistão com a notícia de que encontrou uma noiva para ele. Era 10 de setembro de 2001, um dia antes do fatídico 11 de setembro, nos EUA, quando a arrogância de uma nação-fortaleza ruiu e um mito se fez cinza.  Em companhia de seus amigos Shafiq (Riz Ahmed), Monir (Waqar Siddiqui) e Ruhel (Farhad Harun), ele segue para Karachi, Paquistão, para conhecer a noiva. Esta combinação dá a medida do que virá depois, entre as andanças do quarteto pelas ruas paquistanesas. Há o natural choque cultural, pois eles, embora de origem paquistanesa, não estão acostumados à comida, ao cheiro, à língua e ao ambiente em que mergulham.



                   


Estas nuanças contradizem qualquer análise de que sua origem é suficiente para eles se aclimatarem. Trata-se, na verdade, de uma cultura da qual nada conhecem, salvo pelas rememorações de seus pais e pela circulação deles próprios por ambientes paquistaneses em Londres. Tudo isto exerce sobre eles enorme fascínio, até que se defrontam com a realidade. É esta contradição que explica também a opção deles de seguir para o Afeganistão, para se unir às tropas afegãs contrárias aos talibans. São atraídos para um lado de sua visão de que devem fazer algo, sem ter exata noção do que se trata. Numa dessas perambulações, se encontram em Kandahar, em meio aos confrontos dos talibans com as forças que os pretendiam derrubar, e um deles, Monir, desaparece. Estão, a cada viagem, mergulhados no redemoinho que os levam para local distante de seu ponto de partida, com a agravante de que, devido ao ataque às Torres Gêmeas e ao Pentágono, os EUA tinham invadido o Afeganistão.


                    


 


Métodos americanos são iguais aos das ditaduras


                    


 


Shafiq, Ruhel e Asif, de turistas, passam a vítimas dessa gigantesca invasão que, a pretexto de vingar as vítimas do 11 setembro, transformou-se na tentativa de recolonização do Afeganistão e do Iraque e trouxe instabilidade para o Oriente Médio. Em meio a intenso bombardeio, eles são presos pelos norte-americanos e enviados aos porões infectos onde sofrem torturas de todo tipo. Os métodos são os mesmos das ditaduras militares terceiro-mundistas, pouco importando se eles são inocentes e cidadãos ingleses. Basta que eles sejam de origem asiática, de fé muçulmana. Os interrogadores, naquele jogo de um “bonzinho” revezando-se com o durão, para aterrorizar e, ao mesmo tempo conquistar a simpatia das vítimas. As prisões do regime Bush e de seus generais-fascistas, é bom repetir, assemelham-se às masmorras terceiro-mundistas e os métodos aos dos generais-ditadores. Com a diferença de que estes eram discípulos daqueles, por servirem inclusive a seus interesses escusos impondo o terror em seus países de origem.


 



                   


Hoje, são eles mesmos que aplicam seus métodos às suas vítimas. Não usam intermediários. Se ontem eles treinavam toda uma geração de oficiais dos exércitos latino-americanos, asiáticos e africanos, para serem seus testas-de-ferro em seus próprios países, hoje, professores, eles mesmos usam os métodos que aperfeiçoaram. Nenhum resquício de ética ou moral burguesa, de simular respeito às leis internacionais que protegem prisioneiros de guerra de maus tratos. Tudo é feito em carne viva, com os piores métodos de terror. Winterbottom e Whitecross não se furtam a mostrá-los em suas várias facetas, sejam homens ou mulheres. Os três jovens ganham a simpatia do público, com seus sofrimentos e comportamentos reativos. Não se submetem ao que os interrogadores querem. Não se denunciam, dizendo-se pertencer à Al Quaeda ou ao Taliban, coisa que realmente não eram.


 


 


Sessões de tortura mostram o nível a que chegaram os EUA
              
              


 


Não bastasse esse horror, os três jovens ainda não conheciam o inferno em toda a sua extensão, pois ainda se encontravam nos porões afegãos. A situação, no entanto, logo iria piorar. Em janeiro de 2002, eles são enviados à Guantánamo. Ali vão perceber, durante dois anos e meio, o quanto o ser humano pode submeter o outro a maus tratos sem se importar se ele é realmente culpado ou inocente. São considerados culpados pelo simples fato de serem muçulmanos e terem sido presos em meio aos combates no Afeganistão. Nada mais importa ao Governo Bush, senão sua confissão sob tortura, ignorando inclusive as leis de garantia de direitos humanos. Os EUA, neste instante, são o único juiz e o único carrasco. Os altos decibéis do som, a umidade, as grades a descoberto, iguais às destinadas aos cães, martirizam-nos a ponto de desnorteá-los. Quem assistiu aos filmes sobre as torturas dos prisioneiros das ditaduras militares têm a exata noção do sofrimento a que eles foram submetidos durante horas.



            


O tom sombrio de “Caminho para Guantánamo”, oscilante, em que corpos se transformam em vultos dá a dimensão do momento histórico em que vivemos. É a “época dos pretextos”, da “montagem de fatos”, do uso da mentira para atingir objetivos estratégicos, para hegemonizar um tipo de “democracia-neoliberal” mantida sob bombardeio de mísseis e de mídia. Os direitos dos prisioneiros e a veracidade dos depoimentos dos que estão sob tortura, como se vê nas masmorras americanas em Guantánamo, são negligenciados em toda a sua extensão, tratados como quimeras, coisas inúteis, descartáveis. O que o Governo Bush quer é mostrar para os países considerados fora de sua órbita, o chamado “eixo do mal”, de que pode chegar sua vez, ou seja, de ficarem sob o terror do Governo Bush. Daí, a estética de Winterbottom e Whitecross ter funcionado a contento em seu filme. Tem-se a impressão de que outra forma-narrativa não surtiria o mesmo efeito.


 


               


Filme é bom retrato da insegurança gerada por Bush


             


 


 “Caminho para Guantánamo” é um bom retrato da situação política em que vive o planeta, ameaçado pela superpotência imperante, os EUA. Decadente, devedora de mais de quatro trilhões de dólares, agoniza igual a suas predecessoras: espalhando o terror. Os três jovens britânicos que sobreviveram ainda puderam contar o que sofreram, seu amigo Monir, não, desapareceu em meio ao conflito no Afeganistão. Ninguém sabe seu paradeiro. Deve ter acabado numa das valas abertas pelas tropas norte-americanas para enterrar centenas de corpos, vítimas de um jogo político em que o Afeganistão era um das rotas em disputa entre os EUA e a antiga União Soviética. Encerrada a Guerra Fria, com o desaparecimento da URSS, o país virou um pária, abandonado à própria sorte até que houve o 11 de setembro e o xadrez político se modificou – para pior. A encenação de Winterbottom e Whitecross é mais verdadeira que sua parte nitidamente documental.



 


“Caminho para Guantánamo” (The Road to Guantanamo).Documentário. Drama. Inglaterra, 95 minutos, 2006. Direção: Michael Winterbottom e Mat Whitecross. Elenco: Riz Ahmed, Farhad Harun, Wagar Siddiqui e Afran Usman.

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