Django Livre: A hora do escravo

Em filme inspirado em spaghetti western, o cineasta italoestadunidense Quentin Tarantino põe escravo como herói e ridiculariza a Ku Klux Klan

Depois de transitar pelos filmes de policiais (“Cães de Aluguel”), literatura barata (“Pulp Fiction- Tempo de Violência”), o soja western (“Kill Bill”), guerra (“Bastardos Inglórios”), Tarantino chega ao spaghetti western. Seu “Django Livre” deixa de lado a ópera western de Sergio Leone (“Era uma Vez no Oeste”) para se inspirar em “Django” (1966), do eficiente artesão Sergio Corbucci. E, a partir daí, mantém as convenções do gênero à Tarantino: extrema violência, humor, extensos diálogos, personagens sem ética ou moral

Seu caçador de recompensas é um comerciante de cadáveres (“Posso entregá-los vivos ou mortos” diz o Dr. King Schultz (Christoph Waltz). Seu parceiro, o escravo Django Freeman (Jamie Foxx), depois de liberto por ele, se torna seu sócio. Numa rápida transição do feudalismo para o capitalismo, porquanto de mercadoria, Django passa a ter seu próprio negócio. Aprende a ganhar dinheiro e a sobreviver em meio à violência, o cinismo e a exploração do braço escravo. E se conscientiza de que é um ser humano, não um animal sem alma como queriam a Igreja Católica e os escravocratas, podendo ter livre arbítrio.

Tarantino caracteriza o sistema de escravidão como de pura barbárie, porquanto os africanos são geradores de lucros nas plantações, mercadoria nos leilões de escravos e diversão privada em lutas mortais que nada perdem para os combates de UFC. Suas cotações são as mesmas dos títulos e ações nas bolsas de valores atuais. Os dúbios diálogos do rico fazendeiro Calvin Candle (Leonardo DiCaprio) sobre o valor de seus escravos com Schultz o confirmam. Existem os escravos classe A e os outros, numa hierarquia de preços e serventia. É o horror do sistema escravocrata.

Narrativa foge ao operístico

Em “Django Livre”, Tarantino valeu-se da mitologia alemã através da “Saga dos Volsungos” para dar traços eruditos à procura da amada empreendida por Django. Na lenda, a filha do deus Wotan, Brünnhilde, espera ser salva por seu amado Siegfried, A exemplo deste, Django Freeman (o Django Livre) sai em busca de sua amada Hilde (Kerry Washington), nome dado pela família de imigrantes alemães à qual pertencia (Durante a escravatura os senhores davam seus nomes a seus escravos, como chancela de propriedade). E ele transforma-se, assim, num herói saído do ventre do sistema escravocrata.

Como em toda epopéia, saída das lendas e mitos gregos, Django passa pelo aprendizado do mundo dos brancos com Schultz e lapida sua compreensão do universo dos senhores de escravos sulistas interessados em preservar o braço escravo como mão de obra. Schultz ensina-lhe ainda a inclemência, a frieza e o foco em seu interesse. Desta forma, Tarantino usa o arcabouço dramatúrgico hollywoodiano ao criar um mentor para Django alcançar seus objetivos. A maneira como o faz supera a que lhe ministrou Schultz. Sem temor ou vacilo, ele radicaliza suas ações.

Nesta sua trajetória, descobre outras facetas dos senhores de escravos. Ao conhecer Calvin Candle, este assiste à luta de seu escravo com o de outro escravocrata (Franco Nero, o Django, de Corbucci). Os lutadores estão exaustos, ensangüentados, mas Calvin e a pequena platéia querem mais sangue. E demonstra mais desprezo pela vida do escravo quando este não recebe a cotação mercadológica esperada. Instiga seus cães ferozes a dilacerá-lo. Impossível haver espaço para humor. Mas Tarantino o consegue satirizando a ultra racista Ku Klux Klan. O riso nascido daí é amargo, pois criada para opor-se à libertação dos escravos, em 1867,ela sobrevive até hoje.

Filme mantém herói grego

A coragem de Tarantino é completada com a figura do afrodescendente Stephen (Samuel L. Jackson), capataz de Candland, a casa-grande de Calvin. É um vilão tão cruel quanto os senhores brancos. Para manter sua suposta liberdade, ele tudo faz para agradar seu dono. Daí a polêmica nos EUA. O cineasta Spike Lee chiou. A comunidade afroestadunidense, idem. Mas não há como fugir aos Stephens. Como o capitão do mato, o capataz afro, eles existiram. Transfuga há em qualquer sistema. É com ele e a sinhazinha Lara Lee Candy Fitzwilly (Laura Cayouette) que o desfecho radical se justifica.

Entende-se no desfecho a recusa de Tarantino em não amenizar a resposta à violência e a radicalidade dos próprios escravocratas. São nelas que toda a ira de Django ganha sentido. É como se todo o sistema escravocrata esboroasse. A questão deste desfecho é outro. A ação de Django é individual, solitária, encerra-se em si mesma. Ele não luta contra o sistema escravocrata. Não organiza seus iguais para colocá-lo abaixo e criar um movimento libertário. É o herói de Homero encerrando sua epopéia sem contestar o sistema.

As convenções ditadas pelo sistema burguês-capitalista, hollywoodiano, ficam assim preservadas. Pode haver extrema violência, nudez feminina afro, não cenas de sexo entre afros, nem subversão dos códigos conservadores para não chocar religiosos e classe média. Enfim, Tarantino pode ser iconoclasta, não revolucionário. Django, definitivamente, não é Spartacus.

“Django Livre”. (“Django Unchained”). 
Faroeste. EUA. 2012. 165 minutos.
Fotografia: Robert Richardson.
Trilha sonora: Mary Ramos.
Roteiro/diretor: Quentin Tarantino.
Elenco: Jamie Foxx, Christoph Waltz, Leonardo DiCaprio, Kerry Washington, Don Johnson.

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