A propriedade privada no socialismo (1)

Não vejo grandes implicações à inclusão de empresas privadas de pequeno porte na economia socialista. Esta implicação ganha conotação que perspassa da política ao processo de acumulação socialista em si. Outra conotação a se considerar é relacionada diret

Nesta análise proposta importante partir de algumas premissas. Premissas tais que atendem à harmonia entre superestrutura e base econômica em um país de socialismo em etapa inicial, inclusive o Brasil. Tais são: 1) o modo de funcionamento de uma economia socialista é idêntico à capitalista; 2) a competição entre empresas continua a existir sob o socialismo, com exceção dos preços sobre as indústrias do Departamento I; 3) a economia monetária criada pelo capitalismo é amplamente utilizada no estágio socialista; 4) o poder popular deve ter total controle sob os elementos cruciais do processo de acumulação (sistemas cambial, de juros, financeiro) e do comércio exterior; 5) O planejamento e a propriedade social dos meios de produção estratégicos são essenciais à anulação da ação espontânea das leis econômicas e na utilização em favor do homem da objetividade destas leis; 6) o socialismo diferencia-se pela estrutura de classes no poder; e 6) na forma de apropriação do excedente e pela distribuição mais razoável do mesmo.


 


Toda a argumentação que segue parte das premissas acima expostas.


 



A economia monetária e a “economia natural” do socialismo


 


Sobre a possibilidade de polêmicas rasteiras acerca da economia monetária no socialismo, importante ressaltar duas opiniões interessantes e convergentes acerca desta polêmica.


 


Para Karl Kautsky, “sem dinheiro somente são possíveis dois tipos de economia: a economia primitiva que adaptada às dimensões modernas significaria que o total da atividade econômica consistiria numa única fábrica sob controle central, que alocaria tarefas a cada empresa, recolheria todos os produtos obtidos e alocaria também, a cada empresa seus meios de produção e a cada consumidor seus meios de consumo. Esta economia redundaria numa sociedade carcerária, e no segundo tipo de economia possível sem dinheiro, porém muito idealizada em nosso meio: a 'economia natural' do socialismo” (1).


 


Em Stálin, por ocasião do 17º Congresso do PCUS realizado em Moscou entre os dias 26 de janeiro a 10 de fevereiro de 1937, lê-se o seguinte: “(…) em continuação, temos de superar os prejuízos de outro tipo. Refiro-me ao palavratório esquerdista (…) sobre o comércio soviético como próprio de um estágio superado. Esta gente tão longe do marxismo como o céu da terra, evidentemente, não se dá conta de que temos de dispor de dinheiro durante muito tempo, até que o primeiro estágio do comunismo, o socialismo, tenha sido completado”.



 


As três condições à participação privada


 


Evidente que a existência de um setor privado numa economia socialista trás em seu bojo focos de contradições a serem solucionadas, ou minimamente administradas. Sabendo-se que o poder é a questão central à solução do problema, é factível que este mesmo poder imponha regaras à participação do setor privado.


 


Oskar Lange ao dissertar sobre a questão da transição (2) sugere três condições à participação privada, são elas: 1) tal propriedade deve existir e coexistir num ambiente de livre competição; 2) os meios de produção possuídos por um produtor privado, ou o capital possuído por acionista privado de indústrias socializadas) não devem ter um volume tão grande que possa causar uma considerável desigualdade na distribuição de renda; 3) a produção em pequena escala não deve ser, em longo prazo, tão custosa que a produção em grande escala.


 


***


 


O que está escrito acima não pode ser compreendido somente pela ótica da economia. Impossível. A leitura deve se ater também – e necessariamente – à determinação política. Por exemplo, seria “socialista somente no nome” um país que não impusesse limites à produção privada. Outra questão política que será tratada mais a frente envolve a participação privada e a luta de cunho anti-imperialista.


 


Por fim, para países com baixos níveis de desenvolvimento das forças produtivas, é essencial – a meu ver – a participação privada, pelo seguinte motivo: o Estado Nacional, por si só, é incapaz de arcar com as necessidades materiais e espirituais da ampla maioria da população. Num ambiente de “globalização do capital”, arcar com as necessidades totais da nação e do povo poderia redundar em elevados índices de endividamento externo, o que é algo reacionário na medida em que vilipendiaria a soberania nacional. Obvio que o papel do planejamento é central, na obtenção de superávits comerciais (comércio exterior estatizado) e de tecnologias de vanguarda. Porém, todo o cuidado é pouco nesta matéria de relação com o endividamento externo.


 


Nunca é demais lembrar que em nome da “independência” com relação à URSS, a Polônia – ao aprofundar suas relações com o Ocidente – viu-se com a 2º crise do petróleo (1979) numa verdadeira situação de estrangulamento de suas contas externas. Um prato cheio para a ação da CIA e seus agentes do tal Solidarnosk.


 



Uma contradição a se considerar


 



A proposição de determinadas soluções demanda uma análise mais de fundo. Ainda mais quando se trata da problemática aqui abordada.


 


A livre concorrência como modus operandi é bastante peculiar. Sua consecução depende da busca do máximo benefício, porém dialeticamente, seu funcionamento torna-se um “jogo cego” (anarquia da produção), pois seus benefícios acabam por se minguar na medida em que um crescente número de indivíduos persegue o mesmo objetivo. Ou seja, a “concorrência perfeita” somente é possível onde a magnitude dos negócios é pequena e o número de empresários é grande. Neste contexto, vence a corrida as empresas com capacidade de economia escala. A escala crescente da produção mais o surgimento do capital financeiro são os elementos chave à compreensão do fim da livre-concorrência, sendo substituída pelo monopólio e o oligopólio. Somente o socialismo pode superar o monopólio e o oligopólio (3). 


 


Do ponto de vista da determinação política, o crescente poder dos monopólios e oligopólios reflete-se sob as superestruturas dos Estados. Surge o Capitalismo de Estado como expressão de um Estado que atua externamente em nome de suas empresas. Isso sem falar do advento do imperialismo.


 


É necessariamente nesta formatação da superestrutura e da base econômica que se encontra a contradição principal a ser enfrentada e sintetizada de forma positiva pelo poder popular. O “nó” encontra-se – com a finalidade de desmontar o poder econômico e político de tais – no fato de o retorno a livre-concorrência demandar no desmonte dos monopólios e oligopólios. Porém, temos de ter em mente que tal desmonte acarreta no abandono da grande produção de escala. Abandona-se, também, os êxitos da produção em série associados a uma economia de escala.


 


Tal solução descrita é algo muito improvável de êxito.



 


Base econômica x superestrutura: agudiza-se a contradição
O problema também pode ser sintetizado sob o acicate da propensão à manter o valor dos antigos investimentos executados pelos monopólios e oligopólios. Ora, uma segunda opção seria a controle – por parte do governo – da produção e dos investimentos com a finalidade de diminuir a ação dos citados monopólios e oligopólios. É hora de utilizar a determinação histórica.


 


Sabe-se que no modo de produção escravista, o monopólio sob a mão-de-obra é a determinante na aferição do poder de uma determinada classe. Sob o feudalismo, a propriedade da terra é a determinante do poder e no capitalismo industrial o capital sucede o estágio de coisas anterior.


 


Na atual quadra capitalista, onde o monopólio das finanças é crucial (redundando no fato de o imperialismo ter se transformado no maior poder corrompedor da história), a ação do Estado (capitalista) sob a ação dos monopólios e monopólios, a partir do planejamento, só pode ser estéril, dada a capacidade de o capital financeiro agir sob as autoridades políticas, intelectuais e a mídia como um todo.


 


Assim, ao contrário do objetivo traçado, quem se beneficiaria desta “intervenção” seriam os próprios monopólios e oligopólios. Por quê? Apelando novamente à determinação econômica, cabe sublinhar que a ação governamental tende a orientar os empresários a executar coisas distintas à própria natureza do monopólio. Tal forma de ação levaria os empresários a perdas terríveis, transtornando o esquema financeiro dos bancos e da indústria. A dèbâcle é uma questão de tempo. Os negócios seriam paralisados dadas as crescentes tensões entre Estado e empresários. Agudiza-se a contradição existente entre base econômica e superestrutura.


 


Neste estágio de tensões, a solução socialista passa a ordem natural das coisas. A teoria da “luta-de-classes” seria mais uma vez comprovada pela história.


 



Qual o aspecto principal da contradição principal?



Pressupõe-se que a socialização da propriedade é o mecanismo que permite superar a contradição residente na transformação da propriedade privada de promotora do desenvolvimento à obstáculo do processo.


 


Tal socialização é executada em nome do fim das restrições impostas – historicamente – pela ação dos monopólios e oligopólios.


 


Porém cabem três perguntas, uma de ordem filosófica e duas de ordem econômica: 1) a contradição principal encontra-se na propriedade privada como um todo ou somente em sua expressão monopolística e oligopolística? 2) faz-se necessária a socialização sob os setores privados onde a concorrência ainda prevalece? 3) será que o Estado seria mais eficiente, que a iniciativa privada, em tais setores?


 


A determinação filosófica é essencial à solvência desta contradição inerente às questões levantadas acima. A contradição principal já foi apontada (superestrutura x base econômica). Porém esta resposta não é suficiente, a determinação política demanda resposta a outra questão:


 


Qual o aspecto principal da contradição principal?


 


Não cabem pestanejos. Uma resposta guiada pela política só pode localizar o “inimigo principal” no poder exercido pelos monopólios e oligopólios. O poder popular será consolidado pelo desmantelamento do poder exercido e interesses criados pelo status quo reinante pela fusão do capital bancário com o capital industrial. A propriedade privada – além da função social útil (por conta da eficiência), em pequena escala é aliada potencial nesta contenda.


 


Surge outra classe de contradições e polêmicas a serem sintetizadas. É hora de atentarmos a advertência de Ignácio Rangel, para quem “ (…) não podemos ir muito longe em matéria de prática política sem uma boa teoria econômica, pois política é a economia feita por outros meios, como a guerra é a política feita por meios especiais” (4).


 


Retomaremos o tema na próxima coluna.


 



Notas:


 


(1) KAUTSKY, K.: “The Labor Revolution”. New York. NY Papers. 1922, p. 260.
(2) LANGE, O.: “On the Economic Theory of Socialism”. University of Minnesota. 1938, p. 134.
(3) Imprescindível a leitura do clássico de Lênin, “Imperialismo: a fase superior do capitalismo”.
(4) RANGEL, I.: “O direitismo da esquerda”. In, Obras Reunidas de Ignácio Rangel. Contraponto. Rio de Janeiro, 2005.

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