Estado e Religião

Foi a Revolução Francesa, iniciada em 1789, que consolidou a ideia de separação do estado da religião, com um poder laico, sob o lema da liberdade, igualdade e fraternidade. Estava ali sacramentado o papel do estado como protetor do cidadão, independente de seus credos. Mas o tema continua atual.

Os franceses se inspiraram nas revoluções inglesa, de um século antes, e norte-americana, de 1776. E o conceito democrático ganhou o resto do mundo ocidental. A Revolução Russa e, depois, as da Ásia, como a chinesa e a vietnamita, baseadas na teoria marxista, reforçaram ainda mais essa separação.

Em Cuba, onde de igual modo foi implantado na década de 1950 um regime de inspiração marxista, o estado também é laico, e todo o cidadão tem direito a cultivar seus credos. Religiões de todos os matizes são exercidas com liberdade. Aliás, quem andar por Cuba inteira verá, como eu já vi, mais terreiros de candomblé do que na Bahia.

Mas aí entra o debate sobre estados do Oriente Médio e outras partes do mundo onde a religião está imbricada no poder central. E diferenças religiosas, que às vezes são concepções muito próximas uma das outras, geram conflitos inexplicáveis, que são fomentados pelos países centrais como arma para tentar garantir sua hegemonia mundial.

É claro que os Estados Unidos e seus aliados na Otan usam, também nesta questão, dois pesos e duas medidas. Um tratamento é dado aos aliados, como Israel e Arábia Saudita, que adotam religiões diferentes, mas se alinham aos poderosos. Mas, em outros países, considerados inimigos, a religião é usada como causa de conflitos.

É o mesmo conceito usado para armas nucleares. O correto seria ninguém tê-las, mas na visão imperialista, uns países podem, outros não. E a simples suspeita de que se esteja desenvolvendo a tecnologia nuclear para fins bélicos justifica invasão de países, com massacres de populações desamparadas.

As ações imperialistas puseram abaixo os regimes do Iraque, Líbia e agora agem contra a Síria, onde incentivam conflitos entre clãs, que deveriam ser resolvidos internamente. Por ironia, no entanto, um vídeo plantado na Internet por um judeu americano vem gerando manifestações em pelo menos 19 países de grande expressão muçulmana.

Na Líbia, onde o ex-presidente Anuar Kadafi foi deposto e assassinado com clara participação dos EUA, a embaixada ianque foi queimada e quatro funcionários, inclusive o embaixador, morreram. No Egito, o país mais ocidentalizado da região, a embaixada dos EUA foi cercada e quase invadida também. O mesmo se repetiu em vários outros países.

No Líbano, onde o governo é formado por uma coalizão político-religiosa, a semana foi ainda mais diferenciada. Nas ruas, manifestantes incendiavam lanchonetes e lojas de franquias norte-americanas, enquanto os 30% de católicos do país recebiam com pompas o Papa Bento VI. Com a ressalva de que as principais lideranças muçulmanas libanesas deram boas-vindas e até se encontraram com o ilustre visitante cristão.

Apesar de as manifestações anti-EUA nessas duas dezenas de países terem como mote o tal vídeo que ataca o profeta Maomé, ícone maior da religião muçulmana, seu caráter não é apenas religioso. Demonstram, em verdade, que há em toda a região do Norte da África, Oriente Médio e parte da Ásia um crescente incômodo com a mão de Tio Sam naquelas plagas. E isso é bom.

É claro que o fundamentalismo acaba criando certas confusões. Mas cria em qualquer lugar, seja do matiz religioso que for. Afinal, os radicais católicos alemães fazem massacres e os protestantes e católicos da Irlanda do Norte voltaram aos conflitos que deixou o país em guerra civil por décadas, no século passado.

As convulsões na África e Oriente Médio por certo irão provocar mudanças em algumas fronteiras nacionais. Muitas delas, aliás, são artificiais, criadas por ingerência colonialista. E, ademais, há movimentos de secessão ocorrendo também em outras partes do mundo, como os casos do País Basco e da Catalunha, na Espanha.

A esperança é de que disso tudo surjam estados laicos, democráticos, que nos coloquem cada vez mais distantes do obscurantismo católico da Idade Média.

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