Poesia entre as grades

A tarde não caiu feito um viaduto, acinzou-se até sumir de vez. As paredes da Colônia Penal, já cinzentas de sentenças, juntaram-se à velhice da hora; cúmplices, renderam-se às espreitas a um oficial de justiça de rosto incerto, tão incerto quanto o sol que não olha as enxovias.

O punhado de presas que se espremeu para ouvir o canto de quatro poetisas, não se curvou à iminência do recolhimento. Não se ouviu o sabiá no pátio da Colônia do Bom Pastor, só os arrufos de pombos que disputam migalhas no chão infértil do presídio.
O sabiá voou para cantar longe. As mulheres abriram os ouvidos para as aves de vestidos brancos, véus roxos nos ombros, sentenças de insubmissão. A doce insubmissão de ser mulher. “Quando nasci/os anjos da anunciação/não me disseram nada”; a confissão é de Cida Pedrosa, a mesma que gosta “quando milena fala/dos homens/que comeu durante a noite”.

Não há queixas aparentes, só rogos contidos, tão contidos quantos os passos na camisa de força da disciplina. Há setecentas inquilinas no casarão da Iputinga; os aposentos foram construídos para 170 corpos; cem se apertam, roçam-se, sussurram para adivinhar o que diz a inquietude dos olhos de Cida Pedrosa. A diretora ri sem mostrar os dentes, empertigando-se no vestido justo. Está sentada a uma distância conveniente à dignidade do ofício.

“Carbonizam como breus/Presas como animais” -; é o Cordel do 8 de março, de Suzana Morais, que Cida sonoriza como numa exumação de corpos. As moças não riem, sabem que o calor das celas queima-lhes a pele mesmo sem a dança de chamas. “No futuro viram símbolos/De protestos pela paz” – a noção imprecisa de protesto dá conta de tolice inconfessa, nos olhos fitos na mulher que recita como numa reza. “Por amor e igualdade/E direitos usuais” -; há um amor escasso no Bom Pastor, há quem o reparta na quentura da enxovia, nos suores táteis. Direitos há poucos no chão agora molhado de chuva; há de sobra nos livros de autoajuda da Biblioteca Olga Benário Prestes, da Colônia. “Os romances de autoajuda, elas leem por causa da solidão”, diz a professora de escrita.

“Na carne viva/Na carne morta/Pensava na hereditariedade da dor” – Mariane Bigio foi para a frente como num pulo da cama. Por certo lera em cada rosto uma história de dor; não como num confessionário, onde as dores se desfiam feito ejaculação de agonias; mas fincando os pés no piso crestado de histórias ruins. Recitando Eu só pensava na ferida aberta, lembrou Carlos Pena Filho – “… soltem os presos que o mundo já prisão”.
“Escrever não é miragem/ É ofício e é vertigem” -; na vez de Silvana Menezes o perplexo público deu sinais de estremecimento. Uma vertigem desceu a medula de Jéssica, 21 anos; não deu fé do peso da flacidez na barriga, correu para a cela e trouxe o caderno de anotações com poesias suas. O calhamaço se deixara inchar com letras redondas que nem a cintura da autora; nenhum respeito a pausas entre um período e outro, e uma prenhez precoce de sentimentos. “… a liberdade é um sonho onde a dor é um tormento de minha alma’’ (…) “… a distância pode causar a dor, mais nunca o esquecimento.” O excesso e o erro de grafia são uma minúcia plástica. Presa há dez meses, o Conselho Tutelar tomou-lhe os direitos sobre os dois filhos. “Meu marido era arrombador de lojas. Trouxe o roubo para o barraco. Eu fui presa também.” Passa os dias nas aulas de corte de enxovais. O marido, não o verá mais, posto que o mataram noutro presídio; “Facada no peito”, diz Jéssica.

É noite. A gerente de educação convida as visitas para a sua sala. Bolo, queijo, canjica, milho cozinhado, pamonha e café. Um suvenir é dado a cada visita; lê-se numa chinela em miniatura: Como é bom ser bom.

Do lado de fora, as moças fazem fila segurando vasilhas para a comida. Por trás do pavilhão das celas, há um lugar escuro, temido. “É o Japão, o castigo para quem é flagrada com celular ou ship”, adverte dona Biu, presa, 70 anos.

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