Ustra e o sangue de Carlos Danielli

O nome deste torturador lembra o sangue de um herói, de um exemplo de dedicação infinita à causa do socialismo: Carlos Nicolau Danielli.

O coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra, recentemente julgado por crime de tortura, esteve nas dependências da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra onde proferiu palestra sobre como o Brasil “ruma para o socialismo”. No evento, prestigiado por movimentos neofascistas, ele também respondeu a perguntas “sobre o paradigma entre capitalismo e comunismo”. São assuntos que não merecem atenção além do registro de que se depender desses neofascistas gente como Ustra deve voltar à ativa o quanto antes. O importante é relembrar a trajetória desse sujeito para que a memória de democratas e patriotas trucidados pela máquina de torturas dirigida por ele não seja esquecida.


 


 


Faço questão de lembrar, sempre que ouço o nome de Ustra, de Carlos Nicolau Danielli, covardemente torturado até a morte, de quem tive a honra de escrever a biografia lançada pela editora Anita Garibaldi. O coronel comandou pessoalmente o massacre de Danielli, que durou quase quatro dias. A família Teles, responsável pelo processo contra Ustra, foi presa numa operação que tinha por objetivo restabelecer o contado da direção do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), por meio de Danielli, com a Guerrilha do Araguaia — interrompido quando o Exército atacou o Sul do Estado do Pará em abril de 1972.


 


História de terror


 


O assassinato de Danielli talvez tenha sido o mais importante êxito da repressão durante a passagem de Ustra por São Paulo. Ele foi designado para a função de comandante da tortura pelo general José Canavarro Pereira, no dia 28 de setembro de 1970. Em setembro daquele ano, o presidente da República, general Emílio Garrastazu Médici, expediu uma diretriz de “segurança interna” determinando que em cada comando do Exército existissem um Destacamento de Operações de Informações (DOI) e um Destacamento de Operações de Defesa Interna (Codi). Nasciam os tristemente famosos DOI-Codi.


 


O objetivo era unificar as ações repressivas do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, do Serviço Nacional de Informações (SNI), das secretarias de segurança pública (polícias militar e civil) e da Polícia Federal. Em São Paulo, a Operação Bandeirantes (Oban) já funcionava nos moldes do que seriam os DOI-Codi. Foi a partir da experiência paulista que a repressão teve a idéia de criar essas organizações em várias cidades. Era uma organização “ilegal”, que foi “legalizada” pela diretriz de Médici. Ou seja: foi a “legalização” do terrorismo de Estado, cujo laboratório era a Oban.


 


 


Ustra seria o principal personagem da história de terror daquele DOI-Codi. Sob seu comando, aquela sinistra organização se transformou numa galeria de torturas cruéis e assassinatos brutais. Ele seria desmascarado, muito tempo depois, pela atriz Bete Mendes e respondeu às denúncias escrevendo, em 1987, o livro Rompendo o Silêncio. Danielli, o secretário de organização do Comitê Central do PCdoB, era um alvo perseguido pela repressão por ser o principal responsável pela ligação da direção do Partido que estava em São Paulo e no Rio de Janeiro com a Guerrilha do Araguaia.


 


 


Carta de Grabois


 


 


Para restabelecer o contato interrompido pelo ataque da repressão ao Sul do Estado do Pará em abril de 1972, Maurício Grabois, que comandava a Guerrilha junto com João Amazonas, enviou uma carta por intermédio da guerrilheira Criméia Schmidt de Almeida — irmã de Maria Amélia Teles, conhecida como Amelinha, responsável com o marido César Teles pelo “aparelho” onde Danielli redigia e imprimia o jornal A Classe Operária — aos dirigentes comunistas que estavam em São Paulo e no Rio de Janeiro. Criméia chegou à capital paulista na tarde do dia 28 de dezembro de 1972. Danielli, previamente comunicado da missão, marcou um encontro com Lincoln Oest, que viria do Rio de Janeiro, para o mesmo dia no começo da noite na Rua Loefgreen, na Vila Mariana.


 


 


A missão teria o apoio de César e Amelinha. Os três deixaram Criméia com os dois filhos do casal no “aparelho” e se dirigiram ao “ponto” previamente marcado com Lincoln Oest. Danielli desceu antes e disse para os dois buscá-lo algum tempo depois. Na volta, foram recebidos de armas em punho. Danielli havia caído numa cilada armada pela “comunidade de informações”, que ligava os DOI-Codi. A operação começou com a prisão de dirigentes locais do Partido no Estado do Espírito Santo e chegou a Lincoln Oest, que neste dia já estava morto. Em seu lugar, a repressão mandou outro militante do Partido, que serviu de isca para atrair Danielli.


 


Vida de heroísmo



 


Levado ao DOI-Codi, Danielli foi posto num cubículo infecto. Assim que chegou, foi interrogado por Ustra sobre a Guerrilha do Araguaia. “É disto que querem saber? Pois é comigo mesmo. Mas não vou falar”, disse ele. No dia seguinte, a repressão invadiu o “aparelho” e levou Criméia com as criaças para o DOI-Codi. Todos foram vítimas das brutais torturas comandas por Ustra. Danielli era torturado pessoalmente pelo coronel. Num dos intervalos das sevícias, ele escreveu com seu próprio sangue na parede: “Este sangue será vingado.”


 


Ele foi torturado sistematicamente por três equipes de assassinos. À sua volta, na tarde do dia 31 de dezembro de 1972, a equipe comandada por Ustra viu a respiração de Danielli sumir e com ela toda a esperança de obter as informações persistentemente buscadas em quatro dias que entraram para a história com a marca da crueldade sem limite. Acabava ali, aos 43 de idade, uma vida de heroísmo, de dedicação infinita à causa do socialismo e de exemplo de dignidade.    


 


 


 

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