A propósito da emancipação das mulheres…

Inda que não tivesse os lustres de cristal, o teto com moldes de artemísias em alto-relevo, sugeria leveza de gestos, balbucios entrecortados; entre um ramo e outro, vestais com seios e ventre cobertos, coxas movendo-se e um dos braços esticado, o dedo em riste para tocar noutro, também juvenil, de moço com intenções nubentes.

Fundo e figuras na brancura amaciada do gesso. Os lustres, três em cada um dos dois lados do salão, destilando uma luz fraca, em conluio com o abajur lilás sobre uma cômoda de estilo country.

A seu modo, Lígia e Fontela eram vestais. Uma com o vestido branco, rendado, pouco abaixo do joelho; outra com uma calça comprida branca, sob a blusa transparente da mesma cor, com relevos de malva de cima a baixo, na frente.

O garçom serviu-as conforme o pedido, um Bordeaux tinto, fino. No salão contíguo, ocultando a privacidade de duas toaletes, o pianista abancou-se, tocou com medo de romper o silêncio. A pouca luz socorrendo-o nas escassas notas. Justo em Desafinado, o maître dirigiu-se à mesa de Lígia e de Fontela; empertigado, curvou-se para sugerir às duas:

– Vocês não podem se beijar aqui.

Coincidiu de o pianista encobrir com as notas, a advertência do compositor:

Saiba que isso em mim provoca imensa dor

– O que há de errado em nós? – quis saber Fontela

– Vocês estão se beijando!

– Se fosse um homem e uma mulher, o senhor diria a mesma coisa? Nós somos um casal normal.

– Vocês não são um casal normal.

As duas, ainda com a garrafa do Bordeaux pela metade, a omelete de bordas chanfradas, comida apenas para provar-lhe o gosto, pagaram a conta. Cruzando a porta de saída, não sem chamar a atenção de meia dúzia de outras mulheres, ouviram o pianista dar conta de…

Que no peito dos desafinados,

No fundo do peito bate calado…

No peito dos desafinados

Também bate um coração

Na Ouvidoria Geral do Estado, foram atendidas por duas mulheres. Aconselharam-nas a fazer a denúncia na Delegacia de Mulheres, para o caso ser encaminhado ao governador, pelo assessor para a Diversidade Sexual. Com o endereço, seguiram à rua do Pombal, a pé, porquanto estavam na rua Gervásio Pires, perto. No número indicado, o vendedor de cachorro-quente, sentado num banquinho junto à carrocinha, informou-lhes que a delegacia se mudara para outro endereço há um ano.

– A primeira informação certa do dia – aliviou-se Fontela.

Na Delegacia da Mulher, na avenida Dantas Barreto, disseram-lhes que a queixa não poderia ser registrada, posto que o agressor não tinha qualquer grau de parentesco com elas.

Voltaram à Boa Viagem, o bairro do restaurante. Na delegacia, lavrou-se o Boletim de Ocorrência. Quando subiram a escada para falar com o delegado, ele descia com o paletó sobre o ombro direito. 17 horas e 45 minutos, o homem encerrara seu plantão.

No restaurante, Fontela e Lígia pediram para falar com a gerente. O maître informara que só à tarde, no final da tarde. Com a cópia do boletim, as duas voltaram ao restaurante.

– Quando isso acontece, e eu conheço os clientes, peço para eles moderarem. Aqui frequentam crianças. Elas não entendem… – A gerente, tão pausada, de modo a infundir gotas de ódio homofóbico.

Vendo o boletim, urdiu-se tão inatingível quanto o leão de chácara.

Na saída, Fontela e Lígia ouviram as derradeiras notas de Desafinado

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