Habemus Papam: Desligada do cotidiano

Em comédia/dramática, diretor italiano Nanni Moretti mexe no delicado tema do afastamento da Igreja Católica da realidade cotidiana e suas implicações num mundo em transição

Na aparência, “Habemos Papam”, do diretor italiano Nanni Moretti (“O Quarto do Filho’), é uma comédia-dramática sobre o cardeal Melville (Michel Piccoli) que se recusa a ser Papa, mas na verdade é sobre a crise da Igreja Católica. O humor é sustentado pelo atrapalhado portavoz do Vaticano (Jerzy Stuhr), espécie de marqueteiro e mestre de cerimônias, que durante o impasse o esconde da mídia e dos fiéis, e o psicanalista ateu (Nanni Moretti) que divide os cardeais para um jogo de basquete conforme seus países de origem e espelha os blocos de poder hegemônicos, que marginalizam os países do Terceiro Mundo.

O riso permite a Moretti e seus coroteiristas Francisco Piccolo e Federica Pontremoli discutirem o afastamento da Igreja Católica da realidade cotidiana de seus fiéis na sociedade moderna. Em crise, como todo o sistema capitalista, ela se apega a velhos dogmas e não vê as velozes transformações sócioeconômicas, científicas e tecnológicas. Nem é interlocutora, como Estado, dos conflitos do Oriente Médio e da África, pouco influi nas políticas de contenção das drogas e no desemprego estrutural que ceifa o futuro da juventude em todo o planeta. O sacrifício em si não garante o céu.
A fuga errática do cardeal Melville pelas ruas de Roma simboliza esta falta de sintonia. Ele deixa de ser a Santidade para descer ao cotidiano como um ser humano comum. Sua reação à multidão, ao trânsito, às vitrines, aos ônibus mostra que a rua não é seu habitat. Ele se enclausurou no Vaticano, seguindo seus cânones, e perdeu o senso da realidade imediata, só permitido pelo convívio direto com as contradições sociais. Porém é uma autoridade religiosa dotada de sensibilidade suficiente para perceber esta verdade.

Entregue a este conflito, sozinho com suas contradições, ele se ampara em suas aspirações da juventude para evitar a loucura. O espaço que busca para reflexão não é o deserto, nem o mosteiro, mas o teatro, seu sonho não concretizado. O sentido de ser ator agora é outro. É do agente que deve mudar a estrutura social para não ser engolido por ela. Isto lhe permite perceber seu despreparo para assumir o Pontificado. Esta humildade não o põe acima dos seres comuns, pelo contrário, o humaniza.

Recusa mostra a coragem do cardeal

Há nele traços do cardeal Albino Luciani, o Papa João Paulo I, que pretendia fazer a Igreja Católica retornar a seus primórdios, não ser o Estado que terminou lhe engolindo. E o aproxima de João XXIII e Paulo VI que compreenderam as radicais mudanças nas relações político-econômico-sociais e optaram pelos pobres, criando as comunidades eclesiais de base. Ele, não, preferiu abdicar, antes mesmo de assumir o Pontificado. É de uma coragem impressionante. É mais preparado que qualquer outro para o Papado, pois percebe suas deficiências e as da Igreja que terá de liderar, administrar e revigorar, com visão do eterno na terra.

Esta coragem é tida como loucura pelos cardeais que o escolheram no conclave. Não consegue alcançar suas reais intenções. Como ocorre com o mafioso de “A Máfia no Divã”, que busca o psicanalista para readquirir a confiança, eles querem apenas atestar sua sanidade. Mas ele só repete perante o psicanalista ateu e a mulher deste, a terapeuta (Margherita Buy), que não está à altura de tal responsabilidade, ou seja, dirigir o Estado Vaticano e liderar mais de um bilhão de católicos no planeta.

Todos esperam que ele retorne como um messias com uma nova mensagem. Esta surge de maneira cifrada, como a alternância das fumaças preta e branca que informa aos fiéis o andamento do conclave. Mas os cardeais não a captam; dado ao apego ao ritual e a sustentação milenar dos pilares da Igreja Católica. Eles, certamente, não compreenderam as mutações sociais que engendraram a crise que acabou por envolvê-los. Moretti consegue, assim, dar conta do tema, sem cair no discurso, na gague fácil, passa sua crítica através das sequências dramáticas nas ruas e no desfecho no Vaticano.

O espectador não fica diante daqueles filmes piedosos, que se curvam ao cânone religioso, Moretti desvenda o ritual da escolha do pontífice, e torna os cardeais seres comuns, dotados de fraquezas e virtudes, como nas sequências do jogo de basquete, de cartas e do recolhimento em seus quartos. O que os diferenciam dos fiéis é sua entrega à fé. A maneira como seguem os preceitos cristãos. É desta forma que mostram a quem servem de verdade, ao risco de reprimirem suas paixões, se fecharem e se circunscreverem à metafísica.

No entanto, “Habemos Papam” não é um filme sobre religião. É sobre poder. Ajuda a quebrar a imagem de que o Vaticano não está sujeito às influências da modernidade. O portavoz-marqueteiro bem o ilustra. Durante a hesitação de Melville, ele manipula os cardeais e a imprensa com agilidade, contornando as dores de cabeça causadas pelo escolhido renitente. Entretanto, o sistema cardinalício entra em pane, pois Melville o pôs em cheque. Na Terra é assim mesmo, no céu ainda não se sabe.

“Habemos Papam”
Comédia-dramática.
França/Itália. 2011. 102 minutos.
Fotografia: Alessandro Pesci.
Música: Franco Pierssanti.
Roteiro: Nanni Moretti/Francesco Piccolo/Federica Pontremoli.
Direção: Nanni Moretti.
Elenco: Michel Piccoli, Jerzy Sthur, Margherita Buy.

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