Vitória parcial da razão

A razão venceu a histeria na decisão adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dia 12, que liberou as grávidas de fetos sem cérebro a optarem por interromper a gestação com assistência médica.

Em caso de anencefalia, o aborto não é crime. A opção da maioria do STF deixou iradas as entidades religiosas e seus seguidores mais fanáticos, que só conseguiram cooptar os votos de dois juízos – do sexo masculino, note-se, ou seja, como disse o ministro Ayres Britto, que votou a favor: “Se o homem engravidasse, a autorização a qualquer tempo para interrupção da gravidez anencéfala já seria lícita desde sempre”.

Durante as sessões que debateram a questão, cristãos mobilizados por entidades católicas, espíritas e evangélicas fizeram manifestação na Praça dos Três Poderes, em Brasília, defendendo que as gestantes de anencefálicos fossem martirizadas até o momento de dar à luz o rebento sem chance de sobrevivência. Um casal chegou a exibir para fotógrafos e cinegrafistas o neném que tiveram com acrania, expondo ao mesmo tempo a própria ignorância: ao contrário do anencéfalo, que sofre de uma patologia letal, a criança acraniota tem cérebro, mas possui má formação na calota craniana. Na sua obtusidade religiosa, os manifestantes sectários não perdoam a mulher, representada por Eva na sua mitologia, por ter seduzido o homem a saborear do fruto da sabedoria. Condena-a, como fez o seu deus, à gestação com sofrimento e dor.


Pelo direito de decisão sobre o próprio corpo

O presidente da mais importante organização clerical do país, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cardeal Raymundo Damasceno Assis, diante da derrota de sua opinião retrógrada, emitiu nota desvirtuando o sentido da decisão. Diz a CNBB: “Considerar que o aborto é a melhor opção para a mulher, além de negar o direito inviolável do nascituro, ignora as consequências psicológicas negativas para a mãe”. Uma inverdade (ou uma mentira de batina, parafraseando Machado de Assis). O STJ descriminalizou a OPÇÃO pelo aborto em caso de anencefalia, não a sugeriu e sequer entrou no mérito de se é essa ou não a melhor escolha.

A sentença do Supremo está longe de permitir à mulher a decisão sobre o próprio corpo. O aborto continua sendo um crime nas leis do país, a não ser no caso de risco de vida para a mãe, de feto anencefálico ou de gestação causada por estupro. O Ministério da Saúde informa que existem em funcionamento apenas 60 serviços credenciados para realizar abortos dentro da lei. Segundo a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, o aborto está entre as cinco principais causas de mortes de mulheres no país, pois, por ser crime, é feito na ilegalidade e em condições precaríssimas, quando a mulher não tem recursos financeiros. O abortamento inseguro responde por 9% dos óbitos maternos na rede pública de saúde.

O que se alcançou na última quinta-feira foi uma vitória, mesmo com suas limitações. Afinal, vivemos num país em que a classe dominante tem longa tradição autoritária, elitista e antidemocrática. E a burguesia se vale escandalosamente de seus meios de comunicação para instigar concepções místicas, retrógradas, machistas, homofóbicas e individualistas. Foi o que se viu, na última eleição presidencial, quando o candidato da direita, das elites e da grande mídia, José Serra, impôs a discussão do aborto num pleito em que esse assunto é absolutamente fora de propósito. Ou melhor, serve ao propósito de unir a fina flor da reação e do obscurantismo e colocar a seu reboque os setores mais atrasados e desinformados da população.

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