"Drive": Violência primitiva

Diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn retrabalha estereótipos hollywoodianos em filme sobre acertos de contas no submundo do crime

Nestes tempos de filmes bicudos, é salutar assistir a obras como “Drive”. Não pelas novidades que traz. Pois, se observadas, elas são poucas. Sim pela forma como o diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn retrabalha estereótipos. Acostumado a encenar o fantástico e o sobrenatural (“Guerreiro Silencioso”, “Medo X”) que o permitem mesclar tempo e espaço, ele os transfere para o noir. Seu filme é, na verdade, uma variante moderna deste gênero hollywoodiano. Chega a alternar sequências no presente e no futuro na mesma ação, deixando o desfecho em aberto.

Mostra o quanto é enganoso prender a arte em compartimentos. Os variados gêneros se intercambiam. Mas acabam refletindo a dicotomia de classe da sociedade burguesa. Os chamados “gêneros menores” são relegados às massas, enquanto as elites se circunscrevem ao circuito de arte. Refn, como se vê, pega os recursos narrativos do filme de massa e os retrabalha no filme de arte. “Drive” é seco, sem psicologismos, como as encenações de Sam Peckinpah (“Os Implacáveis”, “Sob Domínio do Medo”) ou as novelas de Jim Thompson (“Vingança”, “Os Implacáveis”).

No contexto dos anos 1940/1950, “Drive” seria um “filme B”. Hoje é obra independente. Este é o seu ganho. E, embora preserve os arquétipos (herói solitário, ambientes sombrios, claro/escuro, ambivalência, silêncio), os novos tempos são de moral escorregadia e de herói ambíguo. Depois, Drive em inglês tanto pode ser dirigir como energia. No filme, ele assume outro caráter: é o protetor do núcleo familiar, formado pela jovem mãe, Irene (Carey Mulligan), e seu filho pequeno Benício (Kaden Leos), ameaçado pelo crime organizado. No entanto, Drive (Ryan Gosling), sem passado ou raízes visíveis, é capaz tanto de afeto quanto de desmedida ferocidade.

Seu lado visível é o de stutman, dublê de cenas arriscadas em filmes de ação. Em dado momento, ele espelha o meio glamoroso do cinema, em outro espera seus comparsas roubar para fugir dirigindo o Chevy Impala em alta velocidade. Em contraponto, vive solitário, em espaços exíguos. Refn o conduz por estes ambientes com a frieza do diretor francês Jean-Pierre Melville (“O Samurai”, “O Círculo Vermelho”). Todos os entrechos decorrem da urgência calculada, até a explosão da violência primitiva. Dele, Drive, de seu aliado Shannon (Bryan Cranston) e de seus inimigos: Nino (Ron Perlman) e o chefão Bernie Rose (Albert Brooks). É o código natural de seu meio.

Código do crime organizado

Esta violência representa a substituição do machado de pedra pela arma de fogo. O pulsar da libido, o medo da impotência. A inquietante sequência no elevador bem o sintetiza. Drive perde o autocontrole e o senso de humanidade diante de Irene e esmigalha o crânio do inimigo. As feras engolem umas às outras para sobreviver. Sobra pouco ou nenhum espaço para a polícia – ela torna-se apenas um dado. É irreal. Trata-se da luta pelo poder, do controle do negócio, no mundo do crime organizado. A feroz concorrência é eliminada, como no campo imperialista, pela liquidação do oponente. Drive aprende logo as regras do jogo.

Isto fica claro no diálogo de Bernie com Nino. Bernie se vê ameaçado pela facção rival, mais organizada e poderosa. Drive intrometeu-se em seus negócios pondo-os em risco. Uma tática arriscada o fez perder o controle de seu grupo. Refn é quase didático neste entrelaçar de situações e nesgas de “transações” ilegais. Lida com estas nuances mantendo a simbologia do “filme-noir”, surgido das contradições do capitalismo estadunidense com o socialismo da União Soviética: há sempre algo a ameaçar o sistema. Ainda hoje é assim nos filmes policiais, de aventura, de ficção científica.

É o medo do mal, do demônio, fermentado pelo catolicismo e preservado pelo protestantismo. A sociedade burguesa não vive sem satanizar o outro para manter os marginalizados e os países estigmatizados sob controle. Ontem foi a URSS, hoje é o Irã, a Coréia do Norte, amanhã pode ser outro qualquer. O que põe em risco Irene e Benício é o crime organizado, configurado em Nino e Bernie. Drive tem de exterminá-los para preservar a agora sua família. Sua violência, a partir daí, é “justificada”. É o herói burguês-estadunidense, individualista por excelência. Não é à toa que os assassinos múltiplos são sempre solitários.

Por mais estranho que pareça, o espectador se identifica com Drive. Primeiro devido à proteção de Irene e Benício, depois pelo combate aos líderes da facção do crime organizado. Isto o humaniza. Ele é a um só tempo primitivo e afetuoso. Assim, Refn, o roteirista Hossein Amini e o escritor James Sallis, autor do livro homônimo, tornam “aceitável” a sua ferocidade. E escapam à narrativa conservadora, fechada, maniqueísta. Deixam o espectador preencher os claros, entender os entrechos, mesmo se apropriando dos estereótipos e cacoetes hollywoodianos. Não deixa de ser uma boa lição de dramaturgia e encenação.

“Drive”
Policial Noir
EUA. 20011. 100 minutos
Fotografia: Newton Thomas Sigel.
Música: Angelo Badalamenti.
Roteiro: Hossein Amini, baseado no livro de James Sallis.
Direção: Nicolas Winding Refn. Elenco: Ryan Gosling, Carey Mulligan, Bryan Cranston, Ron Perlman, Oscar Isaac, Albert Brooks.
(*) Prêmio Melhor Diretor Cannes 20011.

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