Como sátira política, a malhação de Judas sobreviverá?

Não é justiçamento, mas humorirônico e sarcástico

Malhar ou queimar o Judas no Sábado de Aleluia é,simbolicamente, agir à margem da Justiça oficial, o conhecido "fazerJustiça com as mãos": justiçar um traidor sem que ele tenha direito dedefesa, motivo pelo qual muita gente é contra a tradição de origem católica eortodoxa, trazida para a América Latina por espanhóis e portugueses. De fato,justiçamento é uma coisa, e justiça é outra.

No Brasil, está perdido no tempo o início do costumede julgar, condenar e executar o traidor de Cristo após a leitura do seutestamento, cujo conteúdo satírico é sobre a vida de alguma figura pública realou salpicado de tiradas humorísticas sobre pessoas de destaque na vida local(bairro ou município), estadual ou nacional. Nada a ver com o Judas Iscariotes,aquele que vendeu Cristo por 30 dinheiros.

A criatividade brasileira transformou a malhação deJudas em uma sátira sobre amigos e vizinhos e/ou sátira política, razão pelaqual a ditadura militar de 1964 vigiava as malhações para não permitir quepersonagens do ou a serviço do regime militar fossem alvo de chacota.

Emalguns lugares, era preciso "tirar autorização na polícia" para oevento, só concedida mediante a apresentação do testamento! De modo que nãopodemos negar a cara política adquirida pela queimação do Judas no Brasil eomiti-la é esconder uma parte da nossa história.

O jornalista Laerte Braga, em "Malhação doJudas", diz que "o Judas tomou forma indeterminada, ou virou tematipo o último lugar do time tal; técnicos e jogadores viraram alvo fácil àfalta do direito de malhar generais. Como eu disse, dessa arbitrariedade sevaleram os soldados todos (…). Tudo bem que seja uma tradição católica,mas, na prática, se estendia a todos os cidadãos independentemente do culto quecada um professasse. Malhar Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel ouFigueiredo, nem pensar".

No Brasil, há diferentes maneiras de malhar o Judas,infelizmente, práticas banidas dos grandes centros urbanos, persistindo, porém,nos subúrbios e zonas rurais, mas, inegavelmente, o testamento de Judas é umapeça literária de grande criatividade, a exemplo dos versos recuperados pelaprofessora Neide Maria Rodrigues de Sousa, em 1976, na Bahia: "Meu amigoLeite Ninho/ Compadre das horas mortas/ Tenha cuidado queridinho/ Bata devagarnas portas/ Vou te deixar uma besteira/ Pra lhe botar na pirraça/ Uma vela euma esteira/ E uma garrafa de cachaça./ Esta herança que deixei/ É de grandeestimação/ Tudo isto, Leite Ninho/ Foi deixado de coração/ Lhe disse tudo quesinto/ Pra você que é meu chapa/ Deixe de roubar pinto/ E colocar debaixo dacapa (…)".

Em minha infância, "fazer Judas" era umasenhora diversão, que exigia um paletó velho, gravata, enchimento de serragemde madeira e a cabeça era um mamão verde bem grande; escrever o testamento,outra… Ler o testamento era um doce delírio, que causava orgulho em nossospais, pela capacidade demonstrada de que crianças sabiam fazer versos! Coisa decriança, porque o Judas oficial da cidade era outro, cuja encenação recebiagrande audiência.

Depois, comoção generalizada: todo mundo querendocopiar o testamento à mão – não havia sequer mimeógrafo, imagine xerox – econversar sobre a herança registrada no testamento consumia dias e dias defofocas, já que havia sempre algo a decifrar nas entrelinhas, sobretudoinsinuações sobre cornices e as teúdas e manteúdas de uns e outros… Entendoque malhar o Judas não é justiçamento, mas humor irônico e sarcástico.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor