Comadre

As paredes do casebre não davam conta de conter os ruídos. As telhas, juntas sobre ripas e caibros nus, aqui e ali com rachaduras e pontas quebradas feito bocas sem dentes.

Uma única moradora a chamava de casa, curvada não só pelos anos, mas pelo confinamento nos limites do vão onde acomodara redes de dormir, um fogão de barro estorricado sobre um jirau, e uma mesa com um banco em cada um dos quatro lados. Ela e os dois únicos filhos, tão magros quanto as costelas expostas da mulher que os parira.

Domingo. Inda que o cardápio não fosse acrescido por uma iguaria com promessas de nutrimento, os fios de luz do sol incidindo nas frinchas do telhado infundiam sonhos próprios de cativos. Não que a dona do chão, mesmo sem o título de posse, enxergasse um canteiro de hortaliças na areia poeirenta na frente do casebre. Os filhos, um com doze e outro com treze anos, lesavam na ambição de se crerem animados no uso de brinquedos; dentro e fora do chão socado do vão. A rua estreita não lhes tolhera o desejo; e o barulho de bêbados e mulheres no bulício, nutria-lhes a imaginação.

– Comadre. Estamos sem lugar para fazer a reunião. Resta a sua casa. No emaranhado do Pirambu, ninguém vai notar a nossa presença.

– As paredes são finas, de barro seco. A vizinhança pode ouvir.

– Ninguém vai ouvir a conversa. Vamos conversar do mesmo modo como estamos aqui: sussurrando.

A conversa entre as duas fora interrompida com a vinda da contramestra. Na véspera. Era a única a usar farda, um camisão azul sobre o vestido com o nome da fábrica na frente do bolso sobre o peito; para distinguir-se e para não sofrer queimaduras do óleo quente extraído das castanhas na trituradeira. No sábado o trabalho se encerrava ao meio-dia. As castanheiras sentiam o alívio de não sorver o vapor da fervura do óleo. Por um dia e meio, os pulmões seriam poupados da densa inhaca da cozedura. Não usavam máscaras nos olhos, nos narizes; nem luvas para evitar as bolhas da quentura.

– Não tenho comida bastante pra todo mundo – acrescentara Comadre, logo que a contramestra lhes dera as costas.

– Não se preocupe. Faça comida pra você e seus filhos.

– Vocês vão ficar com fome?

– Não se preocupe. Já disse.

Ao meio-dia o apito da fábrica, feito um monstro liberando cativos e certo de mantê-los sob custódia, rugiu no bairro operário. As castanheiras saíram em grupos, levas de mulheres cridas livres, inda que só por um dia e meio. O bueiro, visto por todo o bairro por sua altura em tijolos aparentes, golfou a espessa fumaça de cheiro acre, familiar a olfatos submissos.

Comadre se imunizara de pesadelos depois de uma dezena de anos no trato com a castanha industriada. No começo, suara de olhos fechados, urdindo-se na mistura de uma caldeira cheia do vaporoso óleo. As duas, ela e Ercília, recém-operárias, confessaram-se os delírios. Os delírios juntaram-nas.

Na noite do sábado, as duas não se encontraram. Ercília se recolheu em casa; não morava só, inda que numa casa de alvenaria num quarto cedido por uma família cujo chefe era um pedreiro. Ercília, do minguado salário, desacudia-o de um terço para ajudar nas despesas. À vontade nos aposentos, fechada a porta, tirou da mala sob a cama um papel com dizeres incendidos. Sentiu no título o efeito de uma solução química – Informe sobre a Guerrilha. Leu as quatro páginas com letras mimeografadas, leu e releu para se crer nos trancos de uma mata com guerrilheiros em tocaia.

Comadre nunca cedera o vão da casa para uma reunião. Conveio que a compra de um pacote de macarrão não desmilinguiria o orçamento. Comprou-o na venda, para evitar de se crer igual às mulheres de orçamento gordo, na fila do supermercado. Misturaria-o com ovo; no prato, ainda soltando fumaça, teria efeito nutriente, nada parecido com o bodum saído do bueiro da fábrica.

A reunião começou às dez horas. Nas ruas sem calçamento, com casas sem rebocos nas paredes, grupos de homens e mulheres dando conta do que viram, viveram durante a semana. Moleques com calção de chita mal escondendo a nudez.

A mesa fora ocupada por quatro militantes. Ercília ocupando o banco mais alto, conforme o relevo de sua incumbência na corporação. Comadre nada dissera sobre o macarrão, mas desconfiara que o cheiro não se entranharia nas paredes sem incitar o apetite de todos. Ao meio-dia, sem que a reunião fosse interrompida, pôs a travessa de barro com a comida sobre a mesa. Coincidiu de ter ouvido da voz sentenciosa de Ercília:

– Estourou a guerra popular no Araguaia…

– Eu também quero ir! – emendou Comadre.

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