Pina: Dança do Cotidiano

Em filme que homenageia sua compatriota, a bailarina e coreógrafa Pina Bausch, diretor alemão Wim Wenders retoma temas de sua obra

Na época do culto do corpo, da busca incessante da perfeição e da eterna juventude, assistir a “Pina”, do diretor alemão Wim Wenders, é ver o quanto sua linguagem e seu potencial são desperdiçados. Ele pode expressar códigos, estéticas e conteúdos que escampam ao homem moderno, na vã tentativa de compensar suas carências e frustrações por meio de malhação e cirurgia plástica. E, embora continue se expressando através dele, suas reais possibilidades são negligenciadas. Tais são as reflexões que as criações da bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch (1940/2009) provocam no espectador e em seu público ao redor do planeta.

Mais que instigar leituras da linguagem corporal, Pina dotava suas criações de conteúdos e estéticas que transcendem o simples cotidiano. É o falar e o agir através da dança. Diálogo e ação estão alicerçados na fusão que faz com o teatro, o Tanztheater, em alemão. E no modo como usa a tradição expressionista alemã, o surrealismo, o realismo e o absurdo em “Sagração da Primavera” (1972), “Café Müller” (2001) e “Vollmond” e em vários de suas peças. Cada uma delas traduz os dilemas do homem moderno e seus impasses.

Foi assim desde que, em 1973, criou a Companhia de Balé do Teatro Municipal de Wuppertal, Alemanha, com bailarinos/as de várias raças e diversos continentes. Dentre elas, a afro-brasileira Regina Advento. Há sempre uma integração entre /bailarino/ator, coreografia, encenação, música e cenário. Wenders, em seu documentário, retrabalha em imagens suas criações. Este retrabalhar é gravar em 3D o que originalmente já era traduzido num fluxo de imagens. Entrechos que se acumulam para dar sentido aos movimentos do corpo como em “A Sagração da Primavera”(1913).

A obra do russo Igor Stravinsky (1882/1971) se presta à incessante repetição, marcada pelos sons angustiantes e o debater dos dançarinos/seres tal qual o homem/mulher moderno/a em seu desapegar da terra. Inevitável a comparação entre duas visões; a do balé clássico e a da dança moderna. Em “O Bailarino de Mao”, o diretor australiano Bruce Beresford se prende à fantasia, ao mitológico, enquanto a dupla Pina/Wenders tende ao moderno, ao cotidiano. A conjugação terra/angústia diz mais ao espectador atual que o lúdico de faunos e fadas da produção australiana.

O mesmo ocorre com “Café Müller”, para ficar nestes exemplos, onde a quase ausência de movimento (dança) sintetiza medo e violência. É o absurdo embate do homem/mulher contra a solidão, configurada na desesperada luta da mulher para não ser abandonada. Seus movimentos assemelham-se ao da marionete que se enrosca no amado, quando repetidas vezes é dele afastada. E no espaço aberto para ela se deslocar, as cadeiras vão caindo e se acumulando. Provoca aflição, porquanto inútil e desesperançada é sua insistência.

Pina trata da solidão

Wenders, acostumado a estes temas, está em seu habitat. Em “Alice nas Cidades” (1973), a garota Alice (Yella Rottländer) procura a mãe numa cidade alemã da qual tem poucas referências. O solitário Travis (Harry Dean Stanton) de “Paris, Texas”(1984) perambula pelo deserto e lugares ermos para reencontrar o filho. Essa busca se repete em várias peças de Pina. Os ambientes são sempre desolados, de perdas, de decadência. Ela, pelo que se vê, faz a mesma leitura contemporânea da Alemanha e do Planeta. Seus bailarinos/personagens estão sempre se contorcendo, mesmo em ambientes bucólicos. Na peça “Água”, marcada pela voz cadenciada de Caetano Veloso, em “Leãozinho”, isto se repete.

Mas o espelhar e a fluidez da água escapam a quem nela se desloca. No entanto, é de uma beleza instigante. Diferente do desespero do homem esforçando-se para subir o morro enlameado. Os obstáculos são enormes para ele atingir o topo. Nem tudo, entretanto, permanece igual, mostra Pina na alternância homem/mulher, jovem/velhice. Feições e movimentos se transformam, as faces perdem o belo e os corpos a vivacidade. É a vida. A juventude não é eterna.

Assim, Wenders utiliza o 3D para dimensionar a integração bailarino/espaço, traduzir as ideias de Pina e pôr o espectador no centro dos sincronizados movimentos de suas coreografias. A profundidade de campo, técnica de difícil articulação ainda hoje, ganha novos contornos. Não basta os atores, os cenários e a iluminação estarem bem posicionados, o enquadramento exige perfeição. “Pina” é o bom exemplo de que, sem truques, funciona. Não precisa chamar atenção para o brinquedo favorito dos cineastas atualmente.

“Pina” serve, sobretudo, para tirar da dança a impressão de arte para as elites. A arte de Philippine “Pina” Bausch trata do cotidiano, do universal, do homem amordaçado por estruturas que o oprimem. No Brasil, grupos como o Ballet Stagium (1971), coordenados por Marika Gidali e Décio Otero, para ficar só neste, há anos pesquisa e cria peças que reforçam a brasilidade, estando mais próximas das camadas populares. Em “Coisas do Brasil” há folguedo, xaxado e forró que encantam pelo todo. Não é preciso ir tão longe para se ver no palco e nas ruas.

“Pina”
Documentário/Dança.
Alemanha/França/Reino Unido. 2011.
106 minutos. Fotografia: Héléne Luvart.
Trilha Musical: Thom.
Roteiro/Direção: Wim Wenders.

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