Shame: Conquista da solidão

A solidão como conquista, a perda da afetividade e o sentido da família são discutidos pelo diretor afrobritânico Steve McQuen em seu filme

Que tempos são esses? Em “Shame”, do afrobritânico Steve McQueen, a jovem Sissy (Carey Mulligan) implora: “Eu te amo! Euuu tííí aaamoo!” Fica fora de si. A perda do amado traduz sua paixão. Numa época de relações fugazes a persistência do amor torna-se inusitada. Pois seu vértice é o alheamento, a frieza, caso de seu irmão Brandon (Michael Fassbender), preso aos sombrios cômodos de seu apartamento e às escuras ruas de Los Angeles.

Ao contrário da irmã, Brandon foge de qualquer relação amorosa. Suas relações sexuais são meras explosões orgásticas. Nunca o satisfazem. E não se apega a referências, origens, família. Ela, desde o início, se desvenda: tenta chamar a atenção dele para seus dilemas. Ele, no máximo, deixa antever seu cotidiano. São existências tão incompletas quanto o meio onde vivem. Ela no limitado palco do bar onde canta, ele na baia que lhe cabe no escritório. Encontram-se, assim, num impasse, ainda que não se questionem sobre isto.

Mesmo nestes tempos disfuncionais, Sissy tenta recuperar o elo perdido entre ela e o irmão. “Somos uma família”, lhe diz. É razão suficiente para se manterem unidos. Sentindo-se invadido em sua privacidade, ele se recusa a aceitá-la. Ser do mesmo sangue é insuficiente para ele. Perdeu qualquer noção de família. É o homem da sociedade capitalista em mutação. Não existe mais o centro. Nem mais a família nuclear é predominante. A estrutura familiar hoje é outra. É formada por casais do mesmo sexo, homens/mulheres que vivem sozinhos, companheiros/as que vivem em espaços separados. E com filhos.

Brandon e Sissy são desenraizados. Pouco se sabe deles além do pouco que escapa em seus irados diálogos. Dela falando ao telefone com o amado, dele jogando pilhas e pilhas de revistas pornôs fora, transando com mulheres em variados espaços, circulando por bares, subindo e descendo de elevadores, quieto no vagão do metrô. Inexiste o que os explique. Nem isto é importante. Estão sempre se engalfinhando, detestando-se mutuamente. O único instante que se dão uma trégua é quando ele a assiste cantar “New York, Ney York”, numa voz nostálgica e sensual. E se emociona.

Amante do “sexo a la carte”

“Shame”, vergonha, é sobre estes seres, produto da megalópole, edificada para o automóvel, o consumismo, a fantasia hollywoodiana. Programada para a solidão, o desencontro, o desamor. Brandon é sua criação mais acabada. Substituiu o sexo consensual pelo fugaz, pago, onde não se admite ver o outro. Quando escapa a esta prisão, ele não se completa. Sua colega de empresa, a afrodescente Marianne (Nicole Beharie), é seu contraponto. Ela tem raízes no Brooklin, um casamento frustrado, nenhuma nostalgia. Ele tem referências nos anos 60, ela acha “aquilo o caos”. É o único instante de revelação dele: quer pertencer a algo, realizar algo, ela não, seu tempo é o atual: a mutação político-ideológica não está em seu horizonte. É típico da classe média que aspira ao status burguês.

Ela, no entanto, é fruto da emancipação feminina e da igualdade racial. Não se desculpa por estar com Brandon num ambiente de alta classe média branca. Ignora, inclusive, as circunvoluções do garçom em torno do cardápio e da carta de vinhos, como se lhe ensinasse boas maneiras – e ela pede o que quer, sem lhe dar atenção. Tende, inclusive, a relações duradoras. Quando o percebe, Brandon escapa. Regressa ao “sexo a la carte”. Então, percebe-se o quanto Sissy, com sua teimosia em referir-se à família, o incomoda.

Ao contrário dele, seu chefe David (James Badge Dale) é um caçador. Assedia mulheres em boates e a própria Sissy sem escrúpulo algum. Elas são troféus que se abandona tão logo são abatidos. Pouco importa se feriu a presa ou não. Ela pode não se importar, como Sissy. Não se detém num assunto, picota-o enquanto fala com o filho pela internet, conversa com Brandon e programa a noite. Não destoa dos que o rodeiam. Inclusive seu subordinado, companheiro de caçadas noturnas. Nada envolve sentimentos.

Tais são os entrechos articulados por McQueen, homônimo de seu compatriota estilista e do ator estadunidense, ambos falecidos, para desnudar seus personagens. Sua câmera nunca está parada. Flagra-os em sua intimidade, suas fraquezas, sua arrogância e ódio. Ajuda o espectador absorver o estado psicológico deles, entender suas nuances, para onde vai, afinal, a narrativa. Mescla futuro, presente e passado sem perder os fios. E, principalmente, deixa os diálogos pela metade, inconclusos, elípticos, dando a impressão de a cena continuar noutro nível.

“Shame” traz um olhar novo sobre a solidão. Brandon vive só porque conquistou seu espaço. Igual a milhões de homens e mulheres hoje. Gravitar em torno dele, não significa conviver com ele. Sissy não o compreende. Ela quer ter uma família, quando nada representa para ele. Daí McQueen e seu roteirista Abi Morgan não o dotar de referências. Embora sejam necessárias, ele as descartou. Mas, de maneira radical, Sissy mostra-lhe a importância da memória, das raízes, do outro. A alegoria do desfecho do filme é seu reencontro com a afetividade.

“Shame”
Drama. Reino Unido. 2011. 101 minutos.
Fotografia: Sean Bobbitt.
Roteiro: Steve McQueen/Abi Morgan.
Direção: Steve McQueen.
Elenco: Michael Fassbender, Cary Mulligan, James Badge Dale, Nicole Baharie.

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