Escrivão juramentado

Por quarenta anos o escrivão Dagoberto ocupou-se em lavrar escrituras de casas, certidões de óbitos, de casamentos; não só deu conta do jargão próprio do ofício, como talhou a escrita de forma tão arredondada que se assemelhava às curvas do frontal barroco da igreja; ali mesmo perto do cartório.

Não só envelheceu sorvendo o cheiro de fezes de baratas sobre montes de livros grossos, com um metro de comprimento e quase a mesma coisa de largura; mas deixou-se cobrir pela cor amarelenta, encardida, de folhas cunhadas por sua letra e pela de seu antecessor. O antecessor morrera, e Dagoberto crera-se continuador de sua obra. Os livros, mantinha-os deitados num birô ao lado, identificando-os mais pelo bolor das lombadas que pela numeração das folhas, dividida por um traço em declive. O tabelião sugerira que fossem postos nas prateleiras às costas de Dagoberto. Ele, inda que sem perder a noção de subordinação, fincou os pés no chão para dali não arredar os livros. O tabelião, acostumado a distinguir nas narinas do escrivão as linhas de inquietas traças, fungara como para também dar conta da fruição do bodum mefítico de birôs, cadeiras, forro com pintura desbotada e a parede nua de prateleira no lado oposto ao de Dagoberto. A parede, diga-se, não era de todo desprovida de utilidade; Dagoberto, por sua conta e risco, pusera o retrato de busto empinado do antecessor; retrato do mesmo tamanho dos livros, num caixilho de gesso coberto por uma cor cinzenta, inspirada na laje tumular do homenageado. Esperara dez anos, ele, para se crer devoto das ondulações barrocas do velho Aranha. Foi dito que Dagoberto sacrificara parte do próprio estipêndio para pagar a moldura, não só porque fora aprendiz do velho Aranha, espreitando-o no uso da caneta-tinteiro; mas porque fora ao velório, e vira descer à cova o caixão fechado, ornando-se de cravos até sumir sob o monte de terra removida. No preito póstumo, viu-se, Dagoberto, também homenageado na pregação de vida eterna depois da morte; do vigário, do prefeito, vereadores e até do venerável da loja maçônica.

Com um olho pregado na lavra de um título, e outro nos fios ralos do bigode do velho Aranha, o escrivão se entrevia noutro retrato, junto ao de Aranha; daí o risco. Depois de tantos anos, com os braços e o rosto tão amarelados quanto uma cera, não se deu por satisfeito com o anúncio dos seis badalos do relógio da parede, nos fundos da sala, sobre a cabeça do tabelião; e no relógio da igreja, de badalos agudos. A matriz lembrando uma oração de pouco agrado para Dagoberto, posto que teria que fechar os livros para ver, da soleira, a porta e a janela se fecharem no zelo submisso do único contínuo. O fim do dia, Dagoberto pressentia-o quando o contínuo, com modos de alforriado, acendia a luz sombreira pendurada por um fio escuro coberto de fezes de insetos voadores. Antes, pois, de cruzar o balcão de madeira para pôr os pés na soleira, dava meia-volta pelo menos meia dúzia de vezes, rumo ao birô, para certificar-se de que deixara o grampeador ou a caneta-tinteiro em posição adequada à dignidade do cargo; do cargo e do juízo severo nos olhos do velho Aranha.

O tabelião, o primeiro a se pôr na calçada, reparou no costume do escrivão. Mais moço que Dagoberto, sabia-o capaz de assumir o tabelionato e mantê-lo conforme a jura da fé consignada sob o dedo apontador nos carimbos. Aceitara os rumos da casa por meio de herança, e mantivera o escrivão crendo-o a alma viva da instituição. Mas se passaram quatro décadas e arriscou, ali mesmo na soleira.

– Já pensou em se aposentar, Dagoberto?

A porta da frente tinha o resguardo de outra, atrás, a última a ser fechada. Antes que o contínuo empurrasse o ferrolho no buraco da parede, para depois torná-lo imóvel com o cadeado na aba móvel e na fixa, o escrivão teve tempo rever a nudez da parede ao lado do retrato de Aranha.

Se dúvida restasse no juízo de Dagoberto de que os badalos dos sinos tinham o mesmo som do dobre de finados, a sugestão do tabelião tirou-a com a força de uma canetada de seu próprio punho. A palidez cerosa deu lugar à crepitação do sol que não se entrega de vez à noite que o afunda. Não respondeu, balbuciou como para defender-se da tentação de uma mulher pecaminosa.

Em casa, contentou-se com um prato raso de sopa. O sono demorou a chegar, mas dormiu de vez sem sentir a dor do aneurisma na cabeça.

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