Os Descendentes: Assunto desagradável

Diretor estadunidense Alexandre Payne trata das relações conflituosas de casal burguês e discute miscigenação e comportamento da juventude atual

Existem filmes que entram e saem de cartaz sem dizer a que veio. Só a curiosidade pode resgatá-los do anonimato. “Os Descendentes”, do estadunidense Alexandre Payne, é um deles. Visto como obra banal sobre marido obrigado a cuidar das filhas depois que a mulher sofre acidente no mar com Jet Sky, não é, porém, desprezível. Trata, na verdade, de crise conjugal, comportamento da juventude e miscigenação numa família burguesa do Haway, porção asiática dos EUA. E de como a narrativa pode mesclar realismo e terror psicológico sem perder o tema central.

O filme é centrado no advogado Matt King (George Clooney) dividido entre a mulher Elizabeth, (Patrícia Hastie), em coma no hospital, e as filhas adolescentes Scottie (Amara Miller), de 10 anos, e Alexandra, Alex (Shailene Woodley), de 17 anos. A imagem que emerge dele é de um pai ausente, desligado da companheira, e mais interessado nos negócios que rendem milhões de dólares aos numerosos herdeiros da princesa Margareth Ke´Alohilan, sua tetravó nativa. Ao contrário de Elizabeth, que é elogiada pelos que o rodeiam e torcem para ela se recuperar.

O mesmo não corre com ele. Alex, num instante de ira, culpa-o pelo acidente com a mãe. Seu sogro Scott Thorson (Robert Foster) aprofunda a acusação da neta, dizendo que a filha soube desfrutar mais da vida em um ano do que ele, Matt, em anos. Além dessas acusações, tem de lidar com os primos, interessados em liquidar o patrimônio herdado da tetravó. Esta é, no entanto, uma das camadas da narrativa, traçadas a partir do roteiro de Payne, Nat Faxon e Jim Rash, baseado na novela do escritor Kavi Hart Hemmings.

Essas impressões sobre Matt tendem a mudar à medida que Alex, num desabafo para magoar o pai, revela o segredo da mãe. Matt, então, suportando a culpa provocada pelas acusações de negligência com Elizabeth e as filhas, torna-se o macho ferido. Uma situação não de tudo original, que rende, porém, boas sequências. Inclusive porque revela o quanto Brian Speer (Matthew Lillard), amante de Elizabeth, está comprometido com Matt, sem que ambos se conhecessem. São os fios circulares da dramaturgia hollywoodiana que ao interligar os personagens prendem o espectador em suas teias.

Culpas mútuas do casal King

Brian mostra-se o caçador que seduz por prazer, não por estar apaixonado. E, ao ser confrontado por Matt, revela-se covarde, despreocupado com as consequências de ter usado Elizabeth. Embora seja vítima de sedução, Alex e Matt a veem como culpada. Mas foi o alheamento de Matt que a levou à vida desregrada e ao descuido com as filhas. Tem-se outro contexto: pais negligentes geram filhos revoltados. É Scottie imitando os palavrões da irmã e atraída pelos filmes pornôs. Mesmo assim, o ódio de Matt cresce, esquecendo de Elizabeth estar em coma, com aspecto cadavérico.

Surge então o terror psicológico. O idi, o inconsciente, dos personagens se sobrepõe ao ego, o consciente. Matt e Alex começam a despejar sobre Elizabeth todo seu rancor. Matt, num instante de insanidade, acusa-a pelo fracasso da vida conjugal deles. Alex não faz por menos. Grita para a mãe: “Me desculpe se não éramos bons demais para você, especialmente papai!”. Até mesmo Julie Speer (Judy Greer), mulher de Brian, se insurge contra ela, na presença de Matt: “Tenho de te perdoar, mesmo que queira te odiar”. Estas surreais reações atestam a capacidade do ser humano de provocar dor no outro, sem culpa alguma.

A diferença é que Elizabeth não pode se defender. Ela está ali, inerte, em coma. Já foi punida por seu “liberado comportamento”. Mesmo que Matt, num instante de mea culpa, lhe peça perdão, esta atitude não o redime. É passivo da decisão que remete à eutanásia. Tão desligado quanto o garoto Sid (Nick Kause), namorado de Alex, para quem tudo é normal, motivo de piada, que tanto irrita Scott. Ele, no entanto, tem seus instantes de reflexão, de equilíbrio, como na conversa com Matt e quando se cala perante Elizabeth.

Três fatores, no entanto, irão mudar o comportamento de Matt: sua aproximação das filhas, a consciência de ter afastado Elizabeth e a luta dos primos para liquidar o patrimônio herdado da tetravó. Eles, agora loiros e de olhos azuis, esquecem que descendem de uma nativa. Matt acusa-os de não falar o havaiano nem o pidgin, dialeto da tribo da qual descendem, e querer apenas dilapidar o patrimônio que não construíram. É sua maneira de se redimir de seu comportamento burguês, centrado na concentração de capital.

Esta é uma questão interessante, a miscigenação da camada dirigente estadunidense, como maneira de se apropriar da riqueza nativa. O acadêmico filme de Payne, embora de maneira subreptícia, coloca o problema e estimula o espectador refletir sobre ele. Seu deslize é reforçar a idéia de que Elizabeth, portanto a mulher, que reage ao marido em iguais condições deve ser punida. O desfecho com Matt e as filhas diante da TV, bem o demonstra. A luta pela igualdade de gêneros ainda não terminou.

“Os Descendentes” (“The Descendent”).
Drama. EUA. 2011. 116 minutos
Fotografia: Phedon Papamichael.
Música: Dondi Bastone. Roteiro: Alexandre Payne/Nat Faxon, Jim Rash.
Direção: Alexandre Payne.
Elenco: George Clooney, Judy Greer, Shailene Woodley, Amara Miller, Robert Forster.

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