A Invenção de Hugo Cabret: para além de Méliès

Nesta homenagem a um dos inventores do cinema, o francês Georges Méliès, o diretor estadunidense Martin Scorsese não se afasta de seus temas costumeiros: perda da inocência, solidão e crença

Mais do que um passeio pelo universo do cineasta, desenhista e mágico francês Georges Méliès (1861/1938), “A Invenção de Hugo Cabret”, de Martin Scorsese, é uma fusão da fantasia do cinema com a criatividade da literatura. Eles se configuram nos adolescentes Hugo Cabret (Asa Butterfield) e Isabelle (Chlóe Moretz). Ele é cerebral, solitário, desconfiado, ela toda fantasia, sensibilidade, perspicácia. Juntos, eles unem a magia de Méliès (Ben Kingsley) à aventura em 3D, transitando pelos gigantescos cenários sem perder a individualidade.

Em outra situação, a tecnologia 3D, permitindo a profundidade de campo e dando volume a personagens, ambientes, estruturas e objetos – acabaria atraindo mais o espectador que a história em si. As grandes dimensões dos cenários facilitariam isto. Em “Metrópolis (1927), Fritz Lang transformou-as em estruturas sociais que reduzem a massa a espectros. Já Scorsese diminui sua simbologia. Eles são apenas espaços para a ação dos personagens.

Há, quando muito, uma circunvolução metafísica. ”O mundo inteiro é uma máquina”, comenta Cabret com Isabelle. E, sentindo-se por ela diminuído, completa: ”Eu tenho uma razão para estar aqui”. Lang, em sua antevisão do nazismo, falava das estruturas do capitalismo, Scorsese prefere a teologia. É sua visão católica do processo social (*). Seu filme é, assim, a procura de sentido para a vida. Cabret, de 12 anos, tenta, a todo instante, reencontrar-se com o pai Claude (Jude Law) através do emblemático robô/criatura.

A busca de Méliès é mais significativa. O conflito bélico de 1914/1918, com sua carnificina e fim tardio do século XIX, o tornou cético com o futuro de sua arte. “As pessoas perderam a capacidade de sonhar”, desabafa. É sua reação ao seu desencanto, falência e ostracismo. Estes fios, puxados por Scorsese, a partir do livro de Brian Selznick, dão ao filme um sentido adverso à homenagem pura e simples. Remete à frustração com o capitalismo no século XXI. É como se ele dissesse: vivemos o ocaso de uma época, vamos sonhar com o cinema!

Erotismo adolescente no século XXI

No entanto, seu cinema não é reflexivo – de situar política e ideologicamente história e personagens. Quando muito eivá-los de inquietação e repulsa a podridão da sociedade de massa. Travis Bickle, em “Táxi Drive” tenta livrá-la dos pecadores, executando os “decaídos”. Sem redenção alguma. Não menos opressivo é o mundo do dickensoniano Cabret. Vive escondido na torre da estação ferroviária, tentando decifrar os enigmas deixados pelo pai. Para sobreviver dribla o guarda Gustav (Sacha Baron Cohen) e seu cão feroz. É Oliver Twist, saído das páginas de Charles Dickens e do filme de David Lean. É quando Isabelle o revigora, tirando-o da solidão.

Isabelle é seu contraponto. Com ela, irá descobrir a solidariedade, o companheirismo e o afeto. Perde, inclusive, a inocência quando ela lhe entrega a chave perdida e ele a encaixa no coração do robô. Puro erotismo. É Juliette Lewis chupando o dedo na garagem com Robert De Niro, em “Cabo do Medo”. Scorsese não poupa o universo adolescente. Sedução e malicia sutil, num filme juvenil. E as leituras de Isabelle, indo de Charles Dickens a Vitor Hugo, passando por Emily Brontë, confirmam a amplitude de suas ideias. Ela é avançada demais para os pudicos anos 30.

É a guardiã que fará Cabret mergulhar nos livros para desvendar a si e a Méliès. Livros que, ao serem folheados, geram imagens que regurgitam os clássicos do cinema mudo. Arte por ela desconhecida, dado ao segredo guardado por Méliès. Cabret, então, lhe faz percorrer os caminhos da ciência e da tecnologia e, portanto, do cinema. Como nos livros, projetando cenas de filmes mudos, ela vê na tela a profusão de situações e estrelas que a encantam. Juntos, abrirão caminho para desvendar o recluso e frustrado Méliés.

Em mais de 500 filmes, cerca de 80 deles preservados, ele inventou gêneros (fantasia e ficção científica); técnicas de filmagem: stop-action (filmar cenas e depois dar-lhe movimento) e story boards (desenho de cana por cena, antes das filmagens): uso de estúdio para filmagem; produção: figurinos, cenários, maquiagem; efeitos especiais. Sua obra-prima “Viagem à Lua” (1902) sintetiza sua contribuição, sendo até hoje citado e visto.

O trio Scorsese/Selzinick/Logan, nesta homenagem, prima pelos efeitos e fantasias brotados de sua imaginação. Mas em algumas sequências, Scorsese envereda por truques fáceis: Cabret pegando a chave nos trilhos. É mais para justificar a tecnologia em 3D. Afinal, o filme mudo foi só uma etapa da evolução do cinema. O perigo agora é cair nos efeitos frios, sem drama humano.

“A Invenção de Hugo Cabret” (“Hugo”)
Aventura. EUA. 2.011. 126 minutos
Fotografia. Robert Richardson. Música: Howard Shore. Roteiro: John Logan. Baseado no livro homônimo de Brian Selznick
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Asa Butterfield, Chlóe Moretz, Christopher Lee, Jude Law.

(*) “Conversas com Scorsese”, Richard Schickel, Cosacnaify/Mostra, 2011.
(**). Oscar 2012:fotografia, arte, efeitos visuais, efeitos sonoros, edição de som.

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