O campanário e Tonheta

O som dos sinos àquela hora, junta-se ao tropel das ondas; repiques agudos, engolidos pelo choque das águas no dique de pedras. A beira-mar há muito sumira sob a frequente preamar. Duas dezenas de velhas acomodam-se nos bancos da Igreja dos Milagres.

Só uma rua separa os fundos da igreja, da vila de casas com terraços estropiados no piso. Não têm forro e são cobertas por telhas quebradas, com arremedo de simetria. À noite, a conjugação das paredes dá conta de luzes vermelhas que não piscam; insistem no anúncio do comércio de mulheres de carnes frias, sem queixas do sopro vindo da goleta.

Fosse dia, as portas estariam fechadas; mesmo sentando na mureta de cada alpendre, ouvir-se-iam sussurros; não de rezas, mas de confissões de maus-tratos, de pagas miúdas na noite arrastada por um bolero remeloso, inda que insone.

Tonheta cobrira-se de um morim grosso, com um cinto da mesma cor na cintura sem curvas; o véu sobre a cabeça chata, larga, a modo dos ombros. Senta-se num canto afastado das beatas; não era beata, mesmo crendo-se tão beata quanto as velhas. Reza, ajoelha-se, não tira o véu da cabeça por toda a meia-hora que dura o te deum. A reza, sopra-a tendo o cuidado de não deixar à mostra o tique dos beiços. Ajoelhara-se no confessionário para dar conta de fornicações que a encovaram no ventre. Não tinha o juízo trôpego, visto que a exumação de rostos bexiguentos, babas de lascívia, gemidos de gozo, manara feito um respiradouro de impurezas. O padre prescrevera-lhe rezas, ora… Sem desconfiar, ela, de que o religioso se provera de repulsa, contraindo os braços na altura do peito, defendendo a maciez pura da batina de abade. Pungira-a com o sinal da cruz para mortificá-la com o fogo vivo do purgatório, sabendo-a incapaz de recompor a pureza de um anjo.

Outra vez do campanário ouvem-se os repiques agudos do sino. Tonheta, sem olhar para ninguém, levanta-se; segue para fora da igreja no mesmo passo insofrido das beatas. As beatas, ela o sabia… e sabia para nutrir a crença de que um dia, depois do culto, também iria abrigar-se numa casa de alvenaria sem a luz vermelha na água-furtada… Na rua da Boa Hora, talvez, com uma igreja de esquina nunca aberta para orações, inda que abrindo caminho para o lírio do vale. O lírio prometido pela casa funerária do mesmo nome, pago à vista ou em prestações.

As beatas, em direção ao inconfesso Varadouro, com a câmara de edis tão probos quanto a musselina de suas camisas, olham para trás; reiteram o sinal da cruz, mais de esconjuro que de perdão contrito, quando veem Tonheta rumo à luz da carnação.

O religioso, seguido pelo coroinha, é cumprimentado por matronas de pouco trato com assuntos da Igreja; mas com a despensa fornida, a geladeira cheia de bifes. Na Praça do Jacaré, acena para moços de faces coradas, camisas de algodão puro. Por cima das casas, vindo dos fundos na praia, o vento sopra entre o balouço dos coqueiros. Noite de sábado. A promessa que vem do despejo do rio Beberibe no mar, é de tisna sem perfumes fluviais.

Antes de entrar no alpendre, Tonheta mira a pequenez da luz carregada de uma jura imprecisa. Por traz da casa, do banquete de barracas cobertas de lona vem o vozerio de uma multidão que distingue o festim até no lampejo de pirilampos. Por trás de cada balcão sem gavetas embaixo, as negras remexem com colheres compridas de madeira, caldeirões com guisados gordurentos, carapebas amareladas no leite de coco. O cozimento da macaxeira solta um vapor para desencantar uma ialorixá ornada de miçangas.

Tonheta, na estreiteza entre cada uma das compridas mesas, avista o parelho de rosto bilioso exumado na confissão. Do lado dele, há uma cadeira vazia…

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