O Artista: Lições esquecidas

A perda dos recursos narrativos do cinema mudo e a evolução do cinema são os temas deste filme do cineasta francês Michel Hazanavicius

Arte essencialmente tecnológica, o cinema vive de transições. De atração ilusionista nas feiras industriais do século XIX até a tentativa atual de consolidar o 3D, ele atravessou significativas fases. Da introdução da narrativa (“Viagem à Lua”, Georges Méliès, 1902) às superproduções (“O Nascimento de Uma Nação”, D.W.Griffith, 1915), ele sempre apresentou novidades que cativassem o público.

Michel Hazanavicius, neste seu “O Artista”, mostra seu instante de Leonardo da Vinci, em preto e branco: ele fala. Em 110 minutos, ele passeia pelos velhos seriados, dramas, melodramas, musicais, atestando o quanto ele perdeu de inventividade.

Por mais que nesta trajetória centenária (1895), ele venha se inovando, abandonou a criatividade imagética. A construção da narrativa, através do contraponto que transforma o público de agente passivo em espectador ativo, raramente é vista. Numa sucessão de encadeados, entrechos bem articulados, Hazanavicius recupera estes recursos, sem cair em facilidades. E sintetiza o início da decadência da estrela do cinema mudo, George Valentim (Jean Dujardim), e a ascensão de sua amada Puppy Miller (Bêrênice Bejo), quando este é tragado pela areia movediça, enquanto seu Cãozinho (Uggy) e a heroína tentam salvá-lo. Não só esta; outras sequências vão compondo sua dilaceração:

I – Valentim na calçada, diante dos letreiros do novo filme de Peppy Miller, percebe a consolidação dela e sua queda; II – Diante da vitrine de uma butique, ele, em seu terno andrajoso, se vê num elegante smoking; III – Numa referência aos velhos seriados (“Perigos de Pauline”, mudo, “Os Perigos de Nioka”, sonoro), permeada pela dialética ficção/realidade, o Cãozinho (Uggy) corre pela rua à procura de quem possa salvar seu amigo Valentim do incêndio. A ação de dá em três vertentes: Valentim se debatendo no fogo, o Cãozinho buscando socorro e o policial não entendendo o que ele queria.

Hazanavicus trabalha durante todo tempo com esses recursos, justificando sua opção pelo preto e branco e o silêncio. Na grande sequência do filme, o aturdido Valentim é o centro da ação. Ouve-se o copo, o latido do cãozinho e o telefone, enquanto ele permanece silencioso. Corte para as bailarinas rindo até o som explodir no choque da pluma contra o asfalto. É o uso do recurso sonoro em sua máxima expansão. E, ao mesmo tempo, revela o estado psicológico de Valentim.

Cinema expande os sentidos

Confirma que o filme sonoro é mais do que o diálogo. A atriz, o ator, falar. Envolve a voz humana, os variados sons cotidianos, os sons produzidos pela natureza e os criados pela tecnologia (efeitos sonoros), para traduzir a sensação de hiperrealismo (estereofônico). Esta função cabia, então, à música. Ela ditava o clima e o ritmo do filme, através da orquestra à frente da tela. Em “O Artista”, ela passeia pelos vários gêneros, acentuando o triunfo, o romance, o dramático, o musical, o encantamento. É como se, sem ela, a narrativa perdesse o sentido. Mas, com a sonoridade, esse papel foi atenuado. Embora muitos cineastas, como Buñuel, quase prescindissem dela em seus filmes.

Esta transição prova que o cinema também busca a configuração dos sentidos. A fusão de literatura (contar história), encenação (recurso teatral) e sonoridade faz com que o espectador viva a plenitude da experiência humana. Esta emoção se completaria com o primeiro filme a cores, em 1935. A originalidade de Rouben Mamoulian, em “Vaidade e Beleza”, de paleta cromática forte, no entanto, carecia das nuances que dão clima aos filmes. E faltava romper bidimensionalidade da tela (altura e largura) para completar a totalidade dos sentidos. Surge daí a busca da profundidade, o tridimensional.

Ela surge com o 3D em filmes de terror, ficção científica e aventura na década de 50 (“A sombra e a Escuridão”, Arch Oboler, 1952). É o auge da luta desesperada de Hollywood para não sucumbir à concorrência da televisão. Isto em meio à tentativa de ampliar o formato da tela: cinemascope, Todd-AO, VistaVision. Mas que só hoje parece começar a se configurar (“A Invenção de Hugo Cabret”, Martin Scorsese, 2011). Época que se multiplicam seus espaços de exibição: DVDs, TVs aberta e fechada, internet, celulares, smartphones. E já se prenuncia a tela ampla nas paredes (“Fahrenheit 451”, François Truffaut, 1966), tornando velharia o que existe hoje.

É destruição criativa, diz Schupemter. Seu espaço exclusivo ficou para trás. Virou acessório dos palácios de consumo. O consumidor vai ao shopping e, no intervalo, assiste a um filme. Perdeu seu romantismo. O carrinho de pipoca foi substituído pela linha de montagem dos grandes baldes de pipoca e dos copos gigantes de refrigerante, que rendem mais lucros que os filmes. Assim, “O Artista”, refilmagem disfarçada do original “Nasce uma Estrela”, de William Wellman (1937), leva o espectador a uma época não apenas do cinema, mas também da Queda da Bolsa de Nova York. Cinema e mercado, no capitalismo, sempre caminharam juntos. Afinal, Hollywood é uma indústria.

Serviço:
“O Artista”). (“The Artist”). 2011.
Drama/Musical. França/Bélgica. 110 minutos. Fotografia: Guillaume Schiff. Música: Ludovic Bource. Roteiro/direção: Michel Hazanavicius. Elenco: Jean Dujardin, Bêrênice Bejo, John Goodman.
(*) Oscar: filme, ator, diretor, figurino, trilha sonora.

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