Mario Sapo

– Tem alguém em casa?

Por certo tinha alguém na casa de dois pavimentos. A pergunta, feita a modo de cumprimento, serviu para dar conta da visita. Nenhum móvel no terraço; nenhuma estranheza, visto ser uma dependência sem uso, a não ser para o acesso à sala. Edwirgem ouvira a pergunta e demorou um tempo para responder, o suficiente para o silêncio urdir-se de cismas. Do lado de fora, pus os braços entre as grades de ferro; convinha abancar-me de familiaridade, porquanto eu deixara crescer a dívida de uma conversa com Mario. A rigor, devo-lhe desde o profuso 1968, quando enchi-me de antipatias a milicos golpistas, graças a sua persuasão; de então para cá, cevamo-nos feito guaiamuns no garajau.

A casa não tem perfumes fluviais, é apática ao cheiro da gordura sob as águas do Capibaribe. A memória, teimosa, migra do subúrbio para a margem do rio. Rua do Sol, centro, o domingo é tão festeiro que um grito seria legitimado pela morenice luzida do Capibaribe. Quatro da tarde, o sol se põe, esconde-se. O trânsito é ralo. Recife é um nicho dos trópicos.

A regata é indiferente à ditadura. Os remadores, cinco em cada embarcação, mostram os músculos no vaivém dos remos. São do Sport, do Náutico e de outros que a memória não acode. A luta de classes nos dera uma trégua. Tínhamos que torcer para dar sinais de integração com a raia miúda de um lado e de outro das águas. Fernando Santacruz sugere que apoiemos o Barroso. O desconhecido e pobre clube de regatas teve o nosso apoio por ser, como o povo, desprovido de recursos. Chegou na popa dos outros, por derradeiro; ainda assim, gritamos. Os remadores, com suor e coragem inglória, acenam para nós. Do outro lado, o sobrado do Dops ceva ódio e, quiçá, alguma tortura. Reiteramos o grito para xingar um esbirro ou outro na sacada do sobrado; para atestar a militância nem tanto anônima.

Mario viera do Berardo, da casa com jardim na frente, regado todo dia por dona Celina, sua mãe. Quatro anos depois, a vizinhança veria descer do carro chapa inoficial, esbirros sem farda à cata de Mario. Uma planta foi pisada. Os tiras ouviram de um dos irmãos:

– Não pise no jardim que é da minha mãe…

Para não engolir tudo, o tira disse:

– Se o outro for brabo como estes três, vai ser difícil prender.

Não tínhamos dinheiro, mas tomamos meia dúzia de cerveja por estarmos vivos, por não estarmos no porão do Dops.

Os esbirros não sabiam que ele deixara para trás os modos de intelectual provecto. Nas mãos uma enxada, à sombra de uma jaqueira uma moringa cheia d’água para dar conta da sede. No trato, ele, de um roçado pequeno, junto com outros camponeses. Roça comunitária, provida pelo pároco da paraibana Solânea. Imaginando, ele, um motim camponês como os dos mujiques de 1917.

– A polícia está a caminho… – disse-lhe o padre.

Reencontro-o numa rua de Fortaleza, centro. Cruzamo-nos e não nos falamos, porque a regra era viver mantendo a compartimentação de cada um. O juízo arrebatou-se num abraço, no urdido deboche do malogro da polícia.

O ato seguinte deu-se com a paixão da dona da casa por ele. Casada, só porque o hóspede tinha as feições de um antigo namorado. Evitou-a feito um vietcongue astuto; em respeito ao marido, ao acolhimento, a Edwirgem.

Ouviu o frevo de Luiz Bandeira e voltou a Recife. Em Casa Amarela, Betinha, ialorixá de 80 anos, pressentiu sua prisão. Preso, sofreu os trancos num cárcere da PE. Edwirgem, do lado de fora, à espreita do marido. O primeiro filho, registra-o com o nome de Diógenes num devaneio com Diógenes Arruda.

Feito um clandestino, administra o matadouro de Paulista num remoto matagal; deixa-se demitir por ter se recusado a demitir os subordinados. Agora, numa administração com tinturas de esquerda, trabalha mas é quase um ornamento; o diabete cegara-o. A Câmara de vereadores não lhe pede perdão, agracia-o com o título de Cidadão Paulistense. O corolário vem com a pensão vitalícia da Comissão de Anistia; a pensão e a comenda de Herói Nacional.

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A memória interrompe-se com o susto vindo da cadeira de rodas na sala; vazia, espectro de paralisia. Súbito, Edwirgem corre para abrir a fechadura do portão; tem pingos d’água no rosto, nos cabelos. Volta para o banheiro, onde banhara Mario Sapo. Com o rosto sereno, sentado noutra cadeira de rodas, ele me cumprimenta com o balouço da mão. Devorador, o diabete amputara-lhe uma perna.

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