“Histórias Cruzadas”: Vítimas do racismo

A segregação racial nos EUA dos anos 60 é o tema central deste drama do cineasta estadunidense Tate Taylor

A grande dificuldade em narrativas como a de “Histórias Cruzadas” é encontrar o equilíbrio entre fatos históricos e ficção. A realidade sempre é mais cativante, contraditória e instigante. A criação para não perder o impacto tende a ancorar-se nela para manter o espectador acesso. É o que mostra o diretor e roteirista Tate Taylor em seu filme, baseado em novela da escritora estadunidense Kathryn Stockett. Ele se vale de coberturas de TV, manchetes de jornais, comentários de lideranças e referências ao movimento contra a segregação racial nos EUA para contextualizar sua narrativa.

É o que vê na crucial sequência em que as domésticas afrodescendentes Aibillee Clark (Viola Davis) e Minny Jackson (Octavia Spencar) são impedidas de tomar o ônibus em meio a protesto anti-segregação. Remete a Rosa Parks (1913/2005), que se recusou a sentar no fundo do coletivo, pondo abaixo a lei que discriminava a comunidade afroestadunidense. Igualmente importante é o discurso de Malcolm X (1925/1965) se insurgindo contra a execução de militantes do movimento anti-segregação. Líder da esquerda negra, ele pregava formas de resistência que influenciaram os Panteras Negras.

A luta, portanto, era muito mais ampla. O que a dupla Taylor/Stockett faz é mostrá-la a partir do microcosmo das domésticas afrodescendentes. Mas centram a narrativa na luta da recém-graduada, Eugênia Phelan – Skeeter (Emma Stone), para tornar-se escritora. Burguesa, inconformista, ela usa a experiência com sua babá afrodescendente Constantine (Cicely Tyson) para denunciar a segregação sofrida pelas domésticas nas mansões de Jackson, Mississípi, nos ebulitivos anos 60.

Os entrechos que dão sentido à trama principal estão centrados nas conflituosas relações das domésticas Aibileen com sua patroa Elizabeth Leefolt (Ahna O´Reilly), nas de Minny com a racista Hilly Holbrook (Bryce Dallas Howard) e nas de Célia Foote (Jessica Chastain), loira, perua, com a rancorosa Hilly. É através delas que Skeeter desnuda a segregação das domésticas. Não poupa nem o arcaico sistema legal persistente, ainda, na década de 60. Notadamente, a “Lei que Orienta a Conduta dos Nãobrancos e outras Minorias” no Mississípi.

Atestado
de insanidade

Estas normas são o atestado de insanidade de uma sociedade que se pretende democrática e igualitária. Numa sequência emblemática, Skeeter lê em off quatro artigos que o comprovam: “I – Nenhum pessoa deve exigir que mulheres brancas sejam tratadas em enfermarias ou quartos onde homens negros estejam internados; II – Livros não devem ser trocados entre brancos e negros. Devem continuar sendo usados pela raça que os usou primeiro: III – Nenhuma barbearia negra deve ser usada por mulheres ou homens brancos; IV – Qualquer pessoa imprimindo ou publicando ou circulando material escrito incitando a aceitação pública de igualdade social entre brancos e negros está sujeita à prisão”.

Estas absurdas leis estavam entranhadas de tal forma na burguesia jacksoniana que Hilly proíbe Minny de usar seu banheiro e instiga suas amigas a construir banheiros separados para suas domésticas. Esta divisão se estendia, inclusive, às relações de trabalho, interraciais, escolares, militares e sociais. Esta nuance da luta de classe está presente na rispidez com que Charlotte Phelan (Allison Janney), mãe de Skeeter, dispensa a idosa Constantine, depois de 30 anos de trabalho. E na maneira como as domésticas Aibillee e Minny se insurgem contra suas patroas. Sem compaixão de parte a parte.

É o que tira o filme do lugar comum, pois a segregação racial negou aos afros seu traço humano. No entanto, os entrechos que envolvem Minny e Célia Foote invertem as posições. Neles Minny influência a frágil e carente Célia, que percebe que a tendo por perto tem uma aliada, inclusive para manter o marido. Elas são, assim, vértices das relações raciais pacíficas, numa época em que isto estava apenas começando. Assim como Minny é o vértice de Célia, Aibillee é o de Skeeter. Ambas anseiam serem escritoras.

Aibilee quer usar sua história como redenção. É um personagem rico em facetas. Controlada, racional, ela se vinga entre lágrimas e palavras. É o espelho da minoria silenciosa que se vale da dor sofrida, para devolver na mesma moeda. Já Skeeter é o protótipo da intelectual e da feminista engajada, que se manifesta através de sua arte. Ela não se insurge, salvo contra o namorado Stuart Whitworth (Chris Lowell), que se revela conservador e racista.

“Histórias Cruzadas” segue o veio aberto recentemente por “A Vida Secreta das Abelhas”. No primeiro é a articulação entre Skeeter e as domésticas Minny e Aibillee para denunciar a semi-escravidão em que vivem; no segundo a garota branca se refugia numa casa dirigida por afrodescendentes e amadurece. Foge, e não tanto, à arte multifuncional de hoje, que se pretende multicultural, multifacetada, voltada para as massas, mas é mero produto mercadológico. Mesmo assim, filmes como estes incomodam. O que não deixa de ser válido.
“Histórias Cruzadas”. (“The Help)”. Drama. EUA. 2011. 146 minutos. Roteiro Tate Taylor, baseado na novela de Katheryn Stockett. Direção: Tate Taylor. Fotografia: Stephen Goldblatt. Música: Thomas Newman. Elenco: Jessica Chastain, Viola Davis, Bryce Dallas Howard, Sissy Spacek, Ema Stone, Octavia Spencer.

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