“Precisamos Falar Sobre Kevin”: Gênese da psicopatia

Em filme sobre massacre em escola secundária, diretora escocesa Lynne Ramsey discute a responsabilidade dos pais na educação dos filhos.

             Muitos pais devem ter deixado o cinema, depois de assistir a “Precisamos Falar Sobre Kevin”, se indagando sobre o tipo de relação que têm com os filhos. Se procuram entendê-los e se conhecem a si próprios o bastante para lidar com eles. Principalmente se um deles tende ao mutismo, ao mórbido, ao violento. Pode estar aí a gênese da psicopatia, cujo ser real irá se revelar no futuro. Tais são as indagações que a diretora escocesa Lynne Ramsey provoca com seu filme, espécie de terror psicológico que explode numa sucessão de execuções assustadoras para qualquer família.
 

          Ela muda o centro deste tipo de história, normalmente concentrada apenas nas deficiências psicológicas do executor adolescente. Diferente de “Tarde Demais”, em que o diretor Shawn Ku põe os pais de Sammy (Kyle Gallner), Bill (Michael Sheen) e Kate (Maria Belo) a pensar no que deu errado na educação do filho. Ramsey estrutura um trio com o adolescente Kevin (Ezra Miller), a mãe Eva (Tilda Swinton) e o pai Franklin (John C. Reilly). Cada um deles contribuirá para o desenlace dessa história tétrica, baseada no livro da estadunidense Lionel Shriver. A começar por Eva que não consegue entendê-lo, pois Kevin não reage às suas brincadeiras, detesta os brinquedos que lhe dá, e fica horas emudecido.

         Cria-se, a partir daí, uma relação tensa entre eles. Numa bela sequência, em que ela esforçar-se para ensiná-lo a contar, ele a surpreende destilando uma sucessão de números numa rapidez estonteante. O que a desnorteia ainda mais. Os próprios médicos a “tranquilizam” afirmando que o garoto é normal. O pai tem a mesma idéia. Ao contrário dela, ele consegue entretê-lo, sem nele provocar reação doentia. Franklin é afetuoso, mas o encaminha-o para jogos viris. Ela, no entanto, exaspera-se a ponto machucá-lo. São dualidades que explicitam a psicopatia do estranho Kevin.
 

          Esta gênese emerge da forma como eles o educam. Eva por não entender Kevin, Franklin por presenteá-lo com armas letais. Estas dualidades se agudizam com o nascimento de Lucy (Úrsula Parker). Kevin terá de dividir a atenção dos pais com a irmã. Mais um problema para eles. Se Kevin já era mórbido, reativo, agora tenderá à violência. Lucy será seu alvo. E seus pais se vêm enredados numa teia comportamental com a qual não sabem lidar. Nenhum deles pensa em levá-lo ao psiquiatra. A maldade dele passa como simples ciúme da irmã, que lhe rouba a atenção dos pais.
 

Médico diz que
Kevin é normal


         Desta forma, Ramsey traz a reflexão para o interior da família. Verifica até onde os pais contribuem para a reação violenta dos filhos. Embute, porém, outra questão: a sociedade capitalista, com suas falsas expectativas da família, deixa de prepará-la para detectar situações que fogem à sua compreensão. Eva, embora desajeitada, pelo menos leva o filho ao médico para verificar se ele tem algum problema. Mas, se mesmo psiquiatras e psicólogos, têm dificuldade para explicar certas disfunções psicológicas, como ela e Franklin iriam antever a explosão violenta do filho? O resultado é uma repetição do Massacre de Columbine, ocorrido em 1999, no Colorado, EUA, e no qual Gus van Sant baseou seu premiado filme “Elefante”.
 

          Uma obra com tal discussão ultrapassa o registro do cotidiano. Este fica na memória coletiva enquanto gera manchetes na mídia. Daí pra frente, volta à “normalidade” das famílias. E de repente, outro caso. Em 2011, Wellington Menezes, de 24 anos, repete Columbine, inclusive no número de vítimas: 13 adolescentes da E.M.Tasso da Silveira, de Realengo, RJ. Kevin tem uma reação dúbia, marcada pelo sorriso ao deixar sua escola. Uma de triunfo por livrar-se do que o atormentava, outra por ganhar os holofotes à porta da escola, numa purgação midiática. Talvez buscasse isto mesmo, em duplo massacre, desmentindo seu cordial relacionamento com o pai e reforçando sua aversão a Lucy.
 

         Ramsey muda a estrutura de cartas adotada por Shriver em seu livro, em que Eva se dirige a Franklin, para uma montagem em flashback. Faz, portanto, uma livre leitura do romance. Mostra o quanto duas linguagens podem ser diferentes. A da escrita e a da imagem. Não há porque exigir fidelidade. Uma pode se delatar nos detalhes, a outra se valer da encenação para transmitir o inferno de Eva. O que era uma questão familiar torna-se um pesadelo social, com a comunidade culpando-a pelo que perpetrou o filho. “Como você foi capaz de fazer uma coisa dessas!”, grita-lhe uma mulher.

         Há todo um clima para traduzir seu estado de espírito. Os tons brancos, quase neutros, das sequências de Kevin, o vermelho-sangue nas paredes de sua nova casa, a sombria mansão onde morava antes da tragédia, ambiente opressivo por ser desproporcional ao tamanho dos membros da família, e, sobretudo, o alheamento de seus colegas de trabalho. Em suas idas e vindas, mesclam-se presente e passado, traduzindo o limbo em que se tornou sua vida. Pode ser uma punição a ela e um alerta aos pais em geral.
 

Precisamos Falar Sobre o Kevin” (“We need to Talk About Kevin”). Drama. Reino Unido/EUA. 2011. 112 minutos. Fotografia: Seamus McGarvey. Música: Jonny Greenwood. Roteiro: Lynne Ramsay/ Rory Stewart Kinnear. Direção: Lynne Ramsay. Elenco: Tilda Swinton, John C. Reilly, Ezra Miller, Úrsula Parker.             

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