“A Separação”: Fatos do cotidiano

A partir de um divórcio, diretor iraniano Asghar Farhadi discute o cotidiano de pessoas comuns em seu país e a influência do Estado em suas vidas

              O diretor iraniano Asghar Farhadi gosta de meter a mão em vespeiros. Em “Procurando Elly”, ele trata de suicídio de uma mulher às voltas com um caso de adultério. Agora, neste seu premiado “A Separação”, traça um perfil da sociedade iraniana, a partir de um divórcio. Este, porém, ultrapassou as salas escuras, devido às pressões dos EUA e da União Européia (EU) para que o Irã não tenha seu programa nuclear. E terminou dando-lhe um significado político para além de suas intenções. Nele, Farhadi fala pelas entrelinhas, pelas elipses, pela contextualização de cada sequência em cenários do cotidiano. Pois este é na verdade um filme sobre o cotidiano de um país estigmatizado pelas potencias capitalistas.
 

           Como em “Procurando Elly”, os personagens de “A Separação” agem em grupo. O que acontece a um deles, afeta a todos. Nenhum deles pode dizer-se isento. É o caso do divórcio desencadeado pela professora Simin (Leila Hatami), devido a um curso de aperfeiçoamento profissional no exterior. Sua decisão afeta a ela, seu companheiro, o bancário Nader (Peyman Moaadi), a filha do casal Termeh (Sarina Farhadi) e o sogro acometido de alzheimer (Ali-Aghard Shahbaza), depois aos que os rodeiam. Farhadi consegue tratar, pelas vias transversas, do direito da cidadã/o de escolher quando e como dispor de sua liberdade. Inclusive de escolher exercê-la no exterior, sem se submeter aos ditames do Estado. Mesmo correndo riscos.
 

            Este fio é um subtexto engrossado em sucessivas sequências em que o Estado aparece; sempre na figura do solitário juiz (Babak Karimi), sem advogados de defesa. É como se ele fosse, e é, o poder que julga os contenciosos. A ele se submetem todos, ainda que às vezes se insurjam, correndo o risco de prisão ou de pesada multa. Entretanto, o tema principal do filme é a família diante do divórcio.  Este fato detona uma série de confrontos e controvérsias, que coloca o filme para além da costumeira referência ao neorrealismo. É mais a dialética do cotidiano com suas implicações sociais, sempre fora do controle do cidadão comum.

             Devido a isto, dois fios logo se apresentam: o dilema da filha para optar entre a mãe e o pai e o suposto peso que representa o avô na terceira idade. Termeh pelo menos pode optar; o avô, por sua doença, nem isto. Ambos são dependentes. Nader o percebe pela via mais dolorosa, quando Simin vai viver com a mãe. Ele tem que assumir todos os encargos familiares antes divididos com ela, abrindo um leque de contradições.  Dentre elas a contratação de Razieh (Sareh Bayat) para cuidar de seu pai As relações de trabalho viram um jogo de enganos e desculpas que acaba no tribunal. E sem qualquer intenção, Simin torna-se o pivô do sofrimento do ex-marido, da filha e do sogro, e não sem motivo dos problemas de Razieh.

Cotidiano no Irã é
igual ao do Ocidente


             Esta entra na narrativa como a proletária desempregada, cujo companheiro Hodjat (Shahab Hosseini) acaba de sair da prisão por dívidas.  Seu comportamento é ditado pelos costumes, submissão a Hodjat e seu fervor religioso. Acaba se enrolando em seus próprios segredos. Simplesmente porque as regras sociais a impedem de expor seus atos.  Hodjat, em princípio um oportunista, é a maior vítima de seus “desacertos”. Pensando ter o controle dela, acaba se revelando um inocente útil. Inclusive em sua briga com Nader. Ao emergir a verdade, ele se dá conta de que não conhece Razieh. E a culpa não é somente dele. Existem tantas regras a obedecer, que ela se perde.
 

            É através de Razieh e Hodjat, justamente os proletários, que Farhadi destrincha o poder das forças religiosas, do Estado e do patriarcado na sociedade iraniana. Ao ver-se confrontada pelo marido a revelar a verdade em sua disputa com Nader, ela se recusa a jurar perante o Corão, como um conservador estadunidense, em iguais circunstâncias o faria perante a Bíblia. Teme ainda que o Estado a penalize por culpar Nader e mesmo admiti-lo perante o mesmo. É um dilema dostoievsquiano; da fé ditando as escolhas e culpas dos personagens. Mas também a condição da mulher das camadas mais baixas sem a liberdade de escolha de Simin, da classe média. Não é diferente no Ocidente, onde as discriminações são mascaradas.
 

            Os impasses entre Simin e Nader não são menos conflituosos. Porém, ela se insurge mais contra ele do que Razieh contra Hodjat. As saídas para seus impasses, configurados na doença do sogro e na opção da filha, estão em escolhas que fogem a seu controle. Tem de esperar pela mediação do Estado para ver-se livre. Ela fez sua escolha, usou sua liberdade, porém existem outras pessoas em jogo – delas depende sua viagem. O mesmo ocorre com os demais personagens. Embora haja o peso do sistema, cada um deles deve arcar com o peso de suas próprias escolhas, ainda que pague por elas. Não é nada fácil.
 

A Separação”. (“Jodaelye Nader az Sinin”). Drama. Irã. 2011.123 minutos. Fotografia: Mahmood Kalari. Roteiro/direção: Asghar Farhadi. Elenco: Leila Hatami, Peyman Moaadi, Sareh Bayat, Shab Hosseini, Sarina Farhadi, Ali-Aghar Shahbazi.
 

(*) Festival de Berlim 201: Ursos de Ouro de Filme, atriz e ator. Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro de 2011.

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