As Malvinas para os Argentinos

O passado sempre aparece convocado pelo presente, como memória viva do nosso tempo (Eduardo Galeano, em As veias abertas da América Latina)

As Ilhas Malvinas voltaram ao cenário do debate sobre a política de relações internacionais. A hilária frase do primeiro-ministro inglês, David Cameron, que acusou os argentinos de colonialismo ao “não respeitarem o direito de autodeterminação” dos habitantes do arquipélago, se não fosse séria, soaria extemporânea, em pleno século XXI.

Mas não é. Considerada como Falklands pelo imperialismo do Reino Unido, nome dado em 1690, em homenagem ao Visconde de Falklands (também nome de uma cidade da Escócia), as duas ilhas ultramarinas, em pleno Atlântico Sul, a poucos quilômetros do território argentino, começou a ser tomada pelo britânico John Byron, em 1765. Um ano antes, porém, o francês Louis Antoine de Bougainville já fundara a base de Port Lois, atual Malvinas Oriental, chamando pela primeira vez de Ilês Malouines. Passados dois anos, a Espanha comprou a ilha da França e declarou guerra à ocupação inglesa. O acordo veio em 1767, quando os dois países coloniais chegaram a um acordo: a parte oriental seria da Espanha e a parte Ocidental da Inglaterra. Traduzindo, a posse eurocêntrica do território se deu em plena decadência do Antigo Sistema Colonial, quando a Europa começa a ver as lutas pela independência no que vira a ser o que conhecemos hoje como América Latina.

Neste processo, ainda no século XIX, a Argentina começou a reivindicar a soberania diante do território das Malvinas, precisamente desde 1811, no contexto histórico final de sua luta pela Independência (ocorreria em 1816), quando os espanhóis abandonaram as Malvinas. Dezesseis anos depois, os primeiros argentinos começaram a colonizar o território, rebatizando Port Louis como Puerto Soledad.

Em 1833, o Imperialismo Britânico, que não reconhecia a posse argentina, aportou uma fragata, ultimou os argentinos sobre o território. Estes, decidindo-se pela incapacidade da resistência, abandonaram as ilhas, enquanto que a Inglaterra iniciou a invasão do território de fato, trazendo colonos da Irlanda, do País de Gales e da Escócia. Ao mesmo tempo, resolvia dois problemas: a posse de um território longe de seus domínios e a exportação de pessoas expulsas do campo em seu vasto território, na fase de consolidação do capitalismo.

Passaram-se mais de cem anos quando, em 1966, um grupo nacionalista seqüestrou um avião Douglas C 4 e pousou nas ilhas, declarando a sua reconquista. Mas durou pouco, sendo detidos todos os bravos lutadores. Em 28 de setembro daquele ano, dezoito jovens, operários e estudantes, entre eles uma mulher, desviaram o avião estatal, em vôo regular para a Patagônia, numa ação batizada como "Operativo" ou "Operação Condor", renomeando Port Stanley para Puerto Rivero, homenageando o gaúcho que havia se revoltado contra os invasores britânicos das Malvinas, em 1833. [1] A ação do grupo nacional-peronista também foi uma reação à ascensão do general Juan Carlos Onganía, após o golpe da "Revolução Argentina" contra o presidente radical Arturo Umberto Ilia [2], deposto por um Golpe Militar. O governo de Onganía considerou os jovens que haviam se rendido à Igreja Católica como um grupo de delinqüentes, sendo que quinze deles foram soltos nove meses depois, enquanto três ficaram presos por “antecedentes político-policiais”.[3]

As Malvinas voltaram às notícias internacionais na conjuntura da Ditadura Civil-Militar (1976-1983), um ano antes do sesquicentenário da usurpação britânica, quando a resistência da população derrotava o Terrorismo de Estado na Argentina. Tudo ocorreu entre 2 de abril e 14 de junho de 1982, há quase trinta anos.[4] Na ocasião, a moribunda Ditadura, em crise econômica, política e social (o modelo econômico havia se esgotado, com profundos conflitos sociais, recessão profunda, inflação anual de mais de 90%, proletarização da classe média, aumento da miséria e do endividamento externo e a queda do salário real) apelou para o nacionalismo latente, aprofundado no discurso após 1976, para reconquistar o apoio da maioria da população. O resultado foi a fracassada tentativa, durante o governo do general Leopoldo Galtieri, de retomar as ilhas. Na ocasião, a Guerra chegou a ter o apoio contraditório de comitês de exilados em outros países.[5] 

O contexto de aprofundamento da crise capitalista na América Latina coincidia com o governo de Margaret Thatcher e a imposição inicial do neoliberalismo, especialmente dos Estados Unidos de Ronald Reagan e da Inglaterra, liderada pela “Dama de Ferro”. Ao subestimar o poder de fogo inimigo, a Ditadura Argentina levou a morte mais de 600 soldados de seu país, a maioria de jovens despreparados e com mínima formação, sendo derrotada militarmente.[6] Porém, a Guerra das Malvinas, na época abreviou a duração da Ditadura, que resistiria cerca de mais um ano apenas no poder e, coincidentemente cairia justo nos 150 anos da ocupação dos ingleses no território reivindicado.

Tudo isso não tirou a luta dos argentinos sobre a soberania das Malvinas. Estes, como os ingleses, sabem da importância econômica das ilhas e aqui está a razão da continuidade imperialista destes últimos em relação ao território. Se no passado, os postos de caça de baleias marcavam a atividade produtiva no arquipélago (que tem ainda as Ilhas Geórgia do Sul e Sandwich do Sul), o atual interesse reside: na posse estratégica de territórios adjacentes à Antártica que pode outorgar futuros direitos sobre o Continente, na posição estratégica sobre o cruzamento austral e o seu tráfego marítimo, bem como; na exploração de petróleo e da pesca na região.

Aqui está o ponto central do debate recente entre David Cameron e Cristina Kirchner. Depois da operação para a retirada de um não-confirmado tumor na tiróide, a Presidenta da Argentina foi recebida na Casa Rosada, retornando ao trabalho em 25 de janeiro próximos, afirmando que o “Comitê de Descolonização das Nações Unidas tem 16 processos de lugares que são colônias, dez delas de Inglaterra, e as mais emblemáticas são as nossas ilhas Malvinas”. [7]

Na rememoração dos 30 anos da Guerra das Malvinas, quando o neoliberalismo não tem mais nada a oferecer aos povos, a não ser ocupações militares, guerras e mais miséria social, quando a Europa explicita ao Mundo a sua mais grave crise econômica desde o governo Thatcher, sinônimo de privatização, terceirização, desregulamentação da economia e precarização dos direitos dos trabalhadores, nada mais propício para que nossos vizinhos argentinos reivindiquem novamente o território ocupado pelo imperialismo inglês.

Cristina Kirchner está certa. As palavras de David Cameron soam arrogantes e ignorantes, como tem sido a ação imperialista inglesa na América Latina ao longo dos séculos, vide a Guerra do Paraguai e o predomínio sobre a Monarquia/Primeira República brasileira, iniciado com o Tratado de Methuen, ou Tratado de Pães e Vinhos, assinado por Grã-Bretanha e Portugal, em 27 de dezembro de 1703. Decorreu dele, a proibição à principal colônia dos portugueses, através do alvará de 5 de janeiro de 1785, impondo severas restrições à atividade industrial no Brasil

As Malvinas continuam sendo parte das “veias abertas” para o escoamento de nossas riquezas. Sem a “patriotada” das classes dominantes argentinas e seus serviçais de 30 anos atrás, sem os crimes e os erros praticados na ocasião, os governos latino-americanos podem se juntar a esta justa reivindicação. Defendamos Kirchner, na mais bela tradição de Artigas, de Rosas, dos Montoneros e de todos aqueles que lutaram contra o colonialismo e não se dobraram diante do imperialismo. Reivindicar as Malvinas para os argentinos, é começar a romper com o ciclo que “proporciona braços baratos para um mercado internacional que exige produtos baratos”, como bem disse Eduardo Galeano no sempre atual As veias abertas da América Latina.[8]

 

Notas

[1] Como nos mostra Rosana Guber, o comandante da operação foi Dardo Cabo (25 anos), que se apresentava como jornalista, mas era militante da juventude peronista da Unión Obrera Metalúrgica (UOM), da qual seu pai, Armando Cabo, era um destacado dirigente. Dardo havia articulado a retomada das Ilhas com César R. Verrier, advogado da Capital e ex-participante do governo de Arturo Frondizi (1958-1961). Ver: Um gaúcho e dezoito condores nas Ilhas Malvinas: identidade política e nação sob o autoritarismo argentino. In. Mana, v. 6, n. 2, Rio de Janeiro, out. 2000. Acesso em 29 jan. 2011.

[2] Sobre o Golpe que depôs Artur Ilia, ver: TARONCHER, Miguel Angel. La caída de Ilia. Buenos Aires: Vergara, 2009.

[3] Cf. GARCÍA, Héctor. 1993. Más de Cien Veces me Quisieron Matar. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, apud GUBER, Rosana, op. cit.

[4] Naqueles dias eu era um jovem adolescente e secundarista, estudante do Colégio Estadual de São Borja – RS, e me admirava com as filas de brasileiros, rumo à cidade de Santo Tomé, na Argentina, em busca de produtos baratos, especialmente a tão afamada “gasolina azul”. O dulce de leche que minha mãe trazia em grandes potes, no entanto, era a alegria minha e de meus irmãos. Vivendo os estertores da Ditadura no Brasil, mal sabíamos da crise que os trabalhadores argentinos viviam na Guerra das Malvinas para sustentar os baixos preços para nós consumidores brasileiros.

[5] Ver o capítulo “La Guerra das Malvinas”, in. NOVARO, Marcos; PALERMO,Vicente. La Dictadura Militar 1976/1983: del Golpe de Estado a la restauración democrática. Buenos Aires: Paidós, 2003, p. 411-459.

[6] Recomendo os filmes Los chicos de la guerra (Argentina, 1984, 105’) e Iluminados por el fuego (Argentina/Espanha, 2005, 100’), dirigidos respectivamente por Bebe Kamin e Tristán Bauer, extraordinários relatos sobre jovens na Guerra das Malvinas.

[7] Fora as ilhas Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul, reivindicadas pela Argentina, destacam-se Gibraltar, reivindicada pela Espanha, o Território Britânico do Oceano, reivindicado por Maurícia e Seychelles, bem como o Território Antártico Britânico, pedidos pelo Chile e pela própria Argentina.

[8] Cf. 23ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 296.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor