“O Último Bailarino de Mao”: Fruto do degelo

Em filme do australiano Bruce Beresford, autobiografia do bailarino chinês Li Cunxin serve para espectador analisar as diferenças entre o trabalho cultural na China e nos EUA dos anos 80.

         No cinema, uma curta sequência costuma definir o entendimento de todo o filme. O australiano Bruce Beresford, talvez sem querer, o faz em seu “O Último Bailarino de Mao”, baseado na autobiografia do bailarino chinês Li Cunxin (Chi Cao). Este ainda estudante na Academia de Artes de Pequim assiste em vídeo um trecho do solo do soviético Mikhaill Baryshnikov. É o suficiente para ele compreender o quanto deveria se esforçar para se equiparar a seu ídolo. Esta sequência, em preto e branco, aparentemente desligada do contexto geral é que irá mostrar o quanto um artista se mira no outro para depurar sua arte.
 

          Este detalhe é o principal subtexto da epopéia de Li Cunxin, um dos maiores bailarinos do século XX. Ainda criança, ele é escolhido para cursar balé na Escola de Artes de Pequim. É o sexto filho, dentre sete, de uma família camponesa da Província de Shandong. Sua história é narrada em flashback, a partir de roteiro de Jan Sardi, com acentuada tendência a demarcar as diferenças entre ser artista na China comunista e nos EUA capitalistas. O maniqueísmo então se impõe, com uma clara opção pelo capitalismo.
 

         Esta manipulação surge nas sequências de formação de Cunxin na escola estatal, onde tudo é férreo, sombrio, sem flexibilidade. A presença do PCC (Partido Comunista Chinês) é mostrada como impositiva; controladora. A da representante do Ministério da Cultura como intromissão. Mas é na discussão entre o coreógrafo Chan e o professor de balé Gao que a diferença entre os dois sistemas se evidencia. Chan tende ao repertório ocidental, visto como capitalista; Gao prefere criar uma estética socialista, que ressalte as conquistas da Revolução Chinesa. Não era apenas uma questão de escolha.
 

        Segundo Ben Stevenson (Bruce Greenwood), coreógrafo da Companhia de Balé de Houston, o balé chinês seria mais físico, atlético, carecendo de flexibilidade. É tão superficial quanto dizer que um é superior ao outro, sem explicitar seus conteúdos. O balé chinês mostrado no filme privilegia o coletivo, mesmo os solos deste não se afastam. Está centrado na luta do povo, no proletariado, em suas vitórias e sacrifícios. Não nos dramas individuais, que descolam o indivíduo das estruturas político-sociais que o oprimem e impedem a concretização de sua real individualidade.
 

Liberdade só
para estrelas


        Então, a questão se desloca para outro campo: o de ser bailarino no sistema socialista, sob sustentação do Estado, ou ser bailarino sob patrocínio de corporações e famílias burguesas no sistema capitalista. Os objetivos, embora se trate de levar a arte ao público, são diferentes. Num prevalece o interesse do Estado em permitir o acesso do povo à arte. No outro o balé é identificado com as elites. A liberdade do artista deriva de ter sua própria companhia ou ser uma estrela que se impõe através da bilheteria. É antes de tudo uma questão de mercado. Não é difícil, portanto, desmontar esta falsa equação.
 

       A referida equação tem caráter nitidamente político-ideológico. E se evidencia no filme em três situações: 1ª) – no deslumbre de Cunxin com a imponência das torres de vidro e concreto, em sua chegada a Houston, como forma de Stevenson atestar a supremacia do capitalismo sobre o socialismo; 2ª) – na pergunta de Cunxin a Stevenson, depois de este lhe mostrar sua mansão: Você mora sozinho aqui?; 3ª) – na irritação de Cunxin com Stevenson: “Você gasta quinhentos dólares com roupas enquanto meu pai ganha cinquenta dólares por ano!”.  Sua ingenuidade era apenas aparente.
 

       Centrado, avesso ao estrelismo, Cunxin conquista seu espaço. Quando sua estadia está para terminar cria-se um conflito diplomático entre os EUA e a China, Cunxin, agora uma estrela, torna-se precioso demais para voltar a seu país. Sua permanência vira questão de Estado. Beresford monta, então, sequências dignas da Guerra Fria. O cônsul Zhang se transforma em vilão, Forster (Kyle MacLachlan), o advogado de Cunxin, em mocinho. Cria-se um desnecessário suspense. A discussão real é obscurecida. Beresford não a esclarece. Apenas vilaniza a China.
 

        Artistas e cientistas carregam consigo conhecimentos e experiências. Suas contribuições ultrapassam fronteiras. E se transformam em referências de seus países por onde passam. Mantê-los em suas origens exige mais que sedução e firmeza ideológica: é necessário estimulo real. Sem isto tendem à evasão. Outros países, notadamente grandes corporações e centros de produção artística, irão desfrutar de seu trabalho e lucrar milhões. O povo que os sustentou não se beneficiará de suas criações.
 

        Embora o filme permita estas análises é um melodrama acadêmico. Tendencioso e maniqueísta. Mesmo quando tenta se equilibrar, como na visita dos pais de Cunxin a Houston e em seu reencontro com família em Shandong, soa como concessão. Restam as belas sequências de balé, principalmente as de “Sagração da Primavera”, de Stravinsky. Beresford já teve dias melhores. (“Conduzindo Miss Daisy”).
 

O Último Bailarino de Mao”. (“Mao´s Last Dancer”). Drama. Austrália. 2009. 117 minutos. Roteiro: Jan Sardi. Coreografia: Graeme Murphy. Música: Christopher Gordon. Fotografia: Peter James. Direção: Bruce Beresford. Elenco: Chi Cao, Bruce Greenwood, Joan Chen.

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