Chacina

Inda que fosse insano, o juízo de Roni não daria conta de um cálculo tão ruim para a família. O pai, um velho de setenta anos, ainda com prumo nos pés; nos pés e nas mãos para cavar com a enxada o caminho de acesso ao casebre. Vizinha a um riacho de água corrente, a morada estava sempre cercada de mato selvagem. Nas chuvas, o reboco de cada um dos quatro lados, deixava escorrer o massapê rachado no verão. Ele o cobria com o barro escuro tirado dali mesmo, nos limites da água escura do riacho.

A madrasta, se comparada ao marido, tinha de parecença somente a cor amarelenta do rosto, decorrente por certo do impaludismo sem tratamento. Na cozinha, o alguidar de barro tinha por serventia o conchego de panelas pequenas, com machucões e arranhões da faca na remoção do arroz ou do feijão, grudado ao fundo na quentura do fogo. Embaixo, a tisna cobria todo o círculo das louças. Ela as fuçava com bucha seca, tirada da trepadeira sobre o telhado; deixava duas ou três secarem no sol; o resto, ainda verde, servia para distrair o estômago do marido e dos filhos, posto que os legumes ali comidos, nasciam e cresciam no pouco espaço que lhes restara depois que outras famílias ali foram morar. Sobre o fogão, presa na parede por um cordão amarrado em duas pontas do tronco envolto no massapê, ela pusera uma tábua lisa, sem pintura; viam-se na prateleira latas pequenas, redondas, fechadas para não deixar escapar o cheiro de temperos, de pós de café, de colorau; ou de unguentos para a cura de enfermidades nunca curadas. Concita, Roni chamava-a Concita, o nome que se acostumara a ouvir da boca de seu pai. Da altura do marido, tinha sempre os dois braços ocupados: um no trato da cozinha ou da limpeza do chão de cimento estropiado; outro, segurando o único filho que parira do marido. Orlando, supunha, não mais se acudia da viuvez depois que se juntara com Concita. Tivesse o costume de se mirar na educação de famílias de posse, munir-se-ia de hostilidade contra os enteados, sobretudo na hora da pouca refeição sobre os pratos de ágata com fragmentos arrancados. Vira exemplos, ela, nas casas onde trabalhara como doméstica; perto de si, mas na beira da praia, onde as casas têm alvenaria de bangalô. Concita sujeitara-se a Orlando em respeito à maturidade do velho; a mesma passividade, estendeu-a aos enteados.

O irmão de Roni, um ano mais novo que ele, no verão, quando a praia se enchia de banhistas, gente fazendo uso das férias como de um patrimônio de uso pessoal, privado, o irmão de Roni empregava-se em bares. Não era garçom, nunca fora, mas tinha vezes no ofício. Não lhe exigiam traje próprio, sequer um calçado para cobrir os pés imissos na areia. Com um calção e uma camiseta, não se recusava a lavar pratos, copos, talheres; lavar e pôr em cima de uma mesa, ao lado da pia, no enxugamento sem mãos. No fim da tarde, quase noitinha, voltava para casa, para contar o miúdo de gorjetas, da paga curta do dono. Na frente do pai, da madrasta.

Abaixo de sua idade, Raminha tinha doze anos. O apelido, deram-lhe por causa dos cabelos em cachos, feito os talos da trepadeira nas paredes de fora e no telhado da casa. Acostumara-se com os irmãos, e não dava mostras de querer outra amizade. Vendo os outros meninos de sua idade, poucos tinham ideia de como se estenderia o som de sua voz, no reclamo de um gracejo aos cabelos sem o estirão do pente. Não trabalhava, nunca trabalhara, mas punha-se em guarda, pronto a cumprir uma exigência do pai ou da madrasta; ou a ouvir do irmão metido a garçom, que, também ele, apesar dos doze anos, podia medir-se na faxina da cozinha ou do salão do bar. Enquanto isso, punha-se nos cantos, sentado numa das tábuas da ponte de madeira sobre um canal estreito; entretinha-se com o nado miúdo de tilápias recém-nascidas.

O pai de Roni trabalhara como vigia, recebendo pagas avulsas. Não atinara para a contribuição à Previdência; aposentara-se por idade.

Roni, com dezesseis anos, ouvira uma proposta e creu-se com o fado promissor e fácil, diferente do resto da família. Com o juízo pouco, deu-se bem durante oito meses vendendo bagulho. O fornecedor, tal como afiançara, pagou-o conforme as vendas. Ele comprou um casaco de jeans, um rádio portátil. Um dia, achando-se com estabilidade nos afagos do chefe, não foi ao barraco onde prestava contas. Dois, três, quatro dias sem aparecer; uma semana, ele bebendo com outros amigos, gabando-se do novo emprego.

Voltou para casa numa noite igual às outras, sem lua e na escuridão dos matos. Não acreditou nos próprios olhos, vendo o pai, a madrasta e os irmãos estendidos na valeta do esgoto. O sangue misturado ao bodum da lama. Deu tempo ainda de ouvir:

– Foram dois. Chegaram numa moto e dispararam os revólveres.

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