Mãos amigas

Em filme sobre conflito entre tradições e leis anti-imigração, diretor italiano Emanuele Crialese discute a perseguição aos imigrantes africanos e a solidariedade dos proletários italianos.

Nestes tempos de xenofobia induzida pela crise político-financeira da União Européia é salutar assistir a um filme como “Terraferma”, terra firme, do italiano Emanuele Crialese (“Novo Mundo”). Nele o que conta é o conflito entre a lei, imposta pelo então primeiro-ministro direitista Silvio Berlusconi e seus aliados fascistas da Liga Norte, os costumes da Itália mediterrânea e os imigrantes africanos. A lei está presente nos atos dos agentes de migração, os costumes milenares nos pescadores e os imigrantes no grupo de etíopes que aporta numa ilha italiana. Todos presos aos ditames históricos, herdados do colonialismo italiano, ainda presentes nos atos das camadas dirigentes do país.

Crialese que tratara da imigração italiana em “Novo Mundo”, mostrando a recepção nada solidária estadunidense, agora enfrenta a perseguição aos imigrantes em seu próprio país. Mas ao contrário de Ermano Olmi, que em “II Villaggio di Cartone” usa a falência dos valores italianos para denunciar a perseguição aos imigrantes africanos, e não só a eles, ele foca sua narrativa no conflito entre tradições, leis excludentes e solidariedade. Esta abordagem torna seu filme militante, pois age no momento histórico. Numa referência ao cinema terceiro-mundista, principalmente ao Cinema Novo, que indicava, com suas obras, a opção pelos povos dos países subdesenvolvidos.

Em “Terraferma” o exemplo é a Etiópia. País destroçado pelo colonialismo europeu e o imperialismo estadunidense não conseguiu, a exemplo da Somália, tornar-se uma nação de fato. Esta subjugação está refletida no comportamento da sofrida etíope Sara (Tamnit T), largada grávida e com filho adolescente na casa da italiana Giulietta (Donatella Finocchiaro). É a personagem que traduz não só as questões políticas e históricas etíopes, mas também a situação da mulher obrigada a sobreviver num país estrangeiro em condições adversas.

E, a partir daí, há um diálogo entre duas mulheres de diferentes classes e culturas. Giulietta, filha de pescador, vive da pesca e do aluguel de sua casa aos turistas no verão. Com a perda do marido quer deixar a pequena ilha mediterrânea para viver em Turim, centro industrial italiano. Sara quer reencontrar o marido que lá está instalado. Pelos costumes etíopes, Giulietta torna-se responsável pela criança nascida em sua casa. A italiana, em princípio recusa, mas o costume etíope cria mais pontos de identidade entre elas que a excludente e racista lei anti-imigração italiana.

Solidariedade proletária é ponto de identidade

O que importa em “Terraferma” é o ser humano, as vítimas, tanto imigrantes quanto pescadores italianos. Os etíopes por encarnar o “clandestino”, o indesejado que desembarca de uma lancha trazendo sua carga de deserdado. O pescador por ver na lei anti-imigração uma violência contra suas tradições. “Meu pai sempre me pediu para não deixar ninguém no mar”, diz o idoso pescador Ernesto (Mimmo Cuticchio). E, ao invés de se submeter às buscas e ameaças dos agentes de imigração, torna-se aliado e protetor dos etíopes. A solidariedade então dita a resistência coletiva dos pescadores da ilha, que também vive do turismo nas férias de verão.

O viés do turismo serve para introduzir outra discussão. A do mercado, do capitalismo usando a lei para afastar os indesejados etíopes. Qualquer menção a eles pode afugentar o turista classe-média. Nino (Beppe Fiorello), irmão de Giulietta, dono de barco e pousada, os quer devolvidos ao mar, para não influir na receita de verão. O sobrinho Filippo (Filippo Pucillo), filho de Giulietta, é o marisco espremido entre a mãe e o tio. Ainda mais quando surge a bela Maura (Martena Codecasa) e tem de esconder a presença de Sara em sua casa. Sua indecisão ditará os rumos da narrativa. Revelará outro Filippo e outra Maura.

Numa impressionante sequência em pleno mar, eles são surpreendidos pela massa de etíopes avançando para a lancha em que se encontram. Desesperados, dezenas de homens e mulheres se lançam à embarcação. Há uma fusão de drama e horror. A encenação é primorosa. Não há como tomar partido – se para Filippo e Maura partirem ou os etíopes ficarem à deriva no oceano. Maura se revela antiviolência, solidária, pondo Filippo como vilão. A urbana Maura não é reacionária. Faz o hesitante Filippo tomar partido, ainda que relutante, diga-se. E o filme cria um impasse.

Atingidos em suas tradições os pescadores protestam usando o que os sustenta. Toneladas de sardinha são espalhadas diante da delegacia de imigração. Ernesto, numa atitude que lembra a do pescador de “A Terra Treme”, de Visconti, trava ríspido diálogo com o chefe de polícia. E demarca seu espaço e posição. “Terraferma”, Grande Prêmio do Júri no 68º Festival de Veneza, então ganha contornos de filme-político. E constrói um espaço para o protesto e a resistência, alertando para o viés danoso das políticas de exclusão e racismo na União Européia. É contundente.

“Terraferma”. (“Terra Firme”). Drama-político. Itália. 2011. 88 minutos. Fotografia: Fabio Gancheti. Roteiro: Emanuele Crialese/Vittorio Moroni. Direção: Emanuele Crialese. Elenco: Filippo Pocillo, Donatella Finocchiaro, Mimmo Cuticchio, Beppe Fionello, Timnit T, Martena Codecasa.

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