Três narrativas de Tolstói

O conde Liev Tolstói tinha 27 anos quando escreveu a trilogia que narra parte da guerra da Crimeia. O cenário é Sebastopol; a cidade é bonita, mas antes de tudo é celeiro da marinha do império russo. Tolstói se alistara como tantos outros moços, filhos da aristocracia russa. Quiçá, como os demais, nutrindo o sonho de pendurar no peito a medalha de São Jorge.

Nos urdumes, o novel oficial tem a busca doentia pela “verdade”, posto que não há personagem ungido a herói. Contos de Sebastopol chega pela primeira vez ao leitor brasileiro, vertido do russo.

Já no primeiro conto, o compromisso do escritor com o que os seus sentidos absorvem, mostra-se na força narrativa. Em Sebastopol no mês de dezembro, utiliza-se de um interlocutor oculto, inda que designado pelo pronome. O pronome é tão indistinto quanto tem o impulso de prova testemunhal. Os olhos não se furtam a distinguir os contornos de uma carroça arrastada por camelos, “rangente, em direção ao cemitério para onde leva cadáveres ensanguentados, que se amontoam até quase a borda…” Não é só o cerco dos olhos, é a proximidade do olfato ao “odor particular de carvão de pedra, esterco, umidade e carne de vaca. (…) lenha, carne, gado auroque, farinha, sucatas de ferro etc.” A abreviatura, cuja função é não enfastiar o leitor, deixa-o, no entanto, cercado por destroços de um espólio miserável.

Tolstói por certo não se sentiu confuso entre o contista e o cronista, porquanto já incursionara nas obras de Púchkin, Liérmontov, Herzen e Turguêniev. Gontcharóv daria à luz ao seu Oblómov em l859, nove anos antes de Guerra e Paz e quatro anos depois da experiência de Tolstói na Crimeia. O certo é que o conde, como a puxar o interlocutor pelo ombro, diz: “Agora, se você tem nervos fortes (…) verá a faca curva e afiada penetrar na carne branca e saudável; verá com que grito terrível e dilacerado, com que imprecações o ferido súbito retoma a consciência; verá o oficial médico atirar a um canto o braço cortado.”

Sem se dar conta de que a guerra decorre de condições objetivas, sobretudo de ordem econômica, diz que “a guerra é loucura”; depois de supor que poderia ser travada homem contra homem em quantidades iguais; “Por que não vinte mil contra vinte mil? Por que não vinte contra vinte?” A suposição descamba nas cogitações do oficial Mikháilov, em Sebastopol em maio. “Certamente serei morto hoje, (…) eu sinto. E o pior é que eu não precisava ir, eu mesmo me ofereci. São sempre os que pedem para ir que são mortos.” Tolstói imiscui-se no juízo ambivalente do personagem. O conforto de que não fora tomado pela covardia, aflora quando vê uma bomba explodir perto de si. “Seja feita a tua vontade. E por que eu decidi servir na guerra?” O perfil do covarde, o autor acentua no epílogo do conto.

A rapidez dos combates, ou o flagrante de que os soldados só se dão conta dos segundos nos instintos de sobrevivência, é focada quando o oficial Kozieltsov é ferido. É em Sebastopol em agosto. “Tomaram Schwartz”, informam-no. “Está tudo perdido!”

“Besteira!”, responde o oficial. O autor retoma a narrativa referindo-se “a uma esplanada aberta, as balas caíram sobre eles literalmente como granizo; duas o atingiram, mas não teve tempo de saber onde, se estava ferido ou apenas contundido.” Aqui o leitor vê o oficial tombar, ouve sua respiração ofegar.

Contos de Sebastopol são narrativas ágeis e abundantes, prenhes de vidas cercadas de morte. Como na deportação de Máslova, no romance Ressurreição (1899). A personagem, junto a mais de seiscentos prisioneiros, é deportada para o cumprimento de pena na prisão de uma região longínqua. “!(…) os prisioneiros começaram a sair em pares, com os chapéus em forma de panqueca sobre as cabeças raspadas, com sacos pendurados nos ombros, arrastando os pés acorrentados e sacudindo a única mão livre, enquanto a outra segurava o saco nas costas.”
Contos… têm a tradução de Sonia Branco, professora de literatura russa na Faculdade de Letras da UFRJ.

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