Luiz, você por aqui?

 


O clube está cheio. Não há mesas nem cadeiras sobrando. No entanto, poucos se dão conta da presença de Luiz Gomes. Está sentado junto a uma mesa em frente ao salão e, aliás, há três cadeiras sobrando junto à dele. No convescote de uma tarde de sábado, paramentara-se como de costume. Sob a luzidia cabeça sem cabelos, descida na altura do tórax, a abundante barba branca sobre um tecido de algodão da mesma cor. É a batina tão lustrosa quanto a pele de seu crânio. Há cinquenta anos, a barroca Goiana vira assuntar com o casario da cidade, o multiartista. Num tempo em que os vários atributos de uma só pessoa, não a reputavam dona de ofícios diversos. Nascera no Barro Vermelho, posto ser o local generoso na matéria-prima de estatuetas moldadas nas mãos, saiu de lá escultor, pintor, talhador, restaurador, ceramista, conhecedor dos costumes nos engenhos cercados pelo canavial. Experimentou o condimento de sinhazinhas, ouviu saraus no copiar. Tem notícias da voz trovosa do barão de Bujari, o mesmo que emprestara o nome de batismo à mata da usina de cana-de-açúcar.

A banda toca uma balada remelenta, de mistura a um iê-iê-iê com suspiros de morto e vivo. Do lado de fora, há o afã de feirantes, a urgência de mulheres na busca de carapebas frescas para o almoço urdido a partir da quinta ou sexta-feira. Estão suados; as roupas nada combinam com os trajes de soirée das damas do convescote.

O perfil eclesiástico de Luiz Gomes acentua o peso dos mais de noventa anos que carrega. Não é clérigo, nunca fora, mas a surdez nos dois ouvidos incita-o a fechar os olhos. Desprende-se dele, indiferença ao arremedo de langor na variação indistinta de cada música, à coqueteria de mulheres com movimentos bruscos nos ombros, nas cabeças; esforçam-se, elas, para ouvir o tilintar dos brincos nas orelhas; são moedas de ametista, pensam.

Em frente ao clube, na Praça do Carmo, há a igreja e o convento do mesmo nome. A arquitetura barroca, intacta, mantém o colóquio mudo com o vácuo da abóbada ensolarada. Sob a imagem do Cristo na cruz, na parede, frei Caneca balbuciara uma reza, talvez para se livrar da polícia do imperador. Não se livrou do enforcamento.

Luiz Gomes intriga-se por não saber o local onde o frade foi enterrado. Em 1970, ante as comemorações oficiais do quarto centenário de Goiana, comemorou a seu modo. Vestiu-se como um republicano, ou um confederado do Equador. Com a habilidade das mãos, do pincel, pôs numa tela também de uso para seus quadros: Goiana, quatro vezes sem ter nada. Andou sozinho feito um Diógenes espremido pelo canavial no entorno. Tinha as barbas ainda pretas, negras como a calça que usara sob a camisa branca, de mangas compridas. Entrou no restaurante onde o consumo de acepipes se dava por conta do cofre municipal. “Não há o que comemorar!…” – questionou, questionando-se. Não evitou a prisão, não foi enforcado; mas teve fios da barba arrancados; um de cada vez, para sentir as dores em doses lacúnicas.

O convescote tem fim às 17h de um sábado de feira. As damas saem lentas para desatar os brincos. Houvera homenagens, nenhuma a Luiz Gomes.

Encontro-o descendo os degraus da porta do clube. Tem a ajuda de uma dama sem coqueteria; o gestual murchara no derradeiro acorde da guitarra.

Luiz Gomes, você por aqui?

Ele responde com estertores na fundura da garganta.

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