“O Garoto da Bicicleta”: Paternidade recusada

Paternidade, influência do tráfico e luta de adolescente para reconquistar o pai são o centro deste filme da dupla de diretores belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne

           Numa pequena cidade belga, o garoto Cyril Catoul (Thomas Doret), de 12 anos, sai à procura do pai Guy (Jérémie Renier) e não o encontra. Com este ponto de partida, os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne discutem, em “O Garoto de Bicicleta”, paternidade, perda do pai e significado da adoção. Com a simplicidade de novela enxuta, sem psicologismo ou manipulação do espectador, eles não deixam questões em aberto. Os entrechos são ditados pelos personagens, não pela história e a narrativa em si. Principalmente de Cyril em sua luta desesperada para conquistar o pai.
 

          Filmes em que filhos temem a perda do pai tendem a ser freudianos, engendrando traumas e revoltas. Os Dardenne, diretores e roteiristas, livram-se deste clichê, mostrando a razão de Guy para não continuar vivendo com o filho. Seus motivos são antes de tudo econômicos. Ditados pela situação de seu país, a Bélgica, em crise político-econômica. Espécie de rastro deixado pela crise européia, cuja principal vítima é o proletariado. Embora a perda da mulher também contribua para a decisão de Guy, o filho se torna, por isto, um peso para ele.
 

       É, em termos político-ideológicos, a influência da superestrutura em sua base social que dita as escolhas no capitalismo. E influi sobremaneira na decisão forçada do cozinheiro Guy; obrigado a penalizar o filho por razões que escapam a seu controle. Além da dificuldade de encontrar trabalho em sua cidade, o infortúnio provocado pela morte da mulher leva-o a reconstruir sua vida longe do filho. Questões fora do entendimento do adolescente, desesperado para entender porque o pai não o quer junto dele.
 

      Daria um melodrama, com lágrimas e culpa. Nada disso ocorre neste filme. Os Dardenne fogem dele usando instrumentos dramáticos simples: a insistência do adolescente, a bicicleta e a figura da cabeleireira, dona de salão de beleza, Samantha (Cécile de France). A insistência é o instrumento mais forte, pois o espectador tende a se identificar com Cyril. Ele reage com violência às explicações dos agentes do reformatório onde se encontra e foge em busca de informações para localizar o pai. O que torna sua desabalada correria de bicicleta pelas ruas da cidade uma aventura juvenil.
 

Estrutura da
família mudou

      Cyril, ao contrário de adolescentes em sua situação, não é frágil, indefeso, carente, aceita qualquer desafio. A bicicleta é seu instrumento de luta e através dela os Dardenne dão simbolismo à sua epopéia. Pois representa mobilidade e extensão de seu corpo. Em “Ladrões de Bicicleta”, Vitorio De Sica a torna símbolo de sustento, de mobilidade e de impotência do sistema por não conseguir localizá-la. Os Dardenne a dotam de mais um significado: o da liberdade. Não é fácil consegui-lo dado aos constantes riscos de perdê-la. Daí suas brigas ferozes para mantê-la.
 

       Mas é o terceiro instrumento que assume maior significado: o papel de Samantha em sua vida. Ela dá equilíbrio aos entrechos e age com maturidade no resgate de Cyril. É madura, decidida, tendente à solidão, e disposta a enfrentar o namorado que não entende sua opção. É a mulher destes tempos de estruturas afetivas que precisam ser construídas e reconstruídas no dia-a-dia. Mostra-o no piquenique com Cyril no campo, ao desconversar quando ele lhe sugere que convide seu parceiro para a festa em sua casa. “Você é atrevido”, lhe diz.
 

      Samantha está ali para cumprir um papel: restituir-lhe a família, na forma que a sociedade burguesa atual reconfigurou. Família nuclear ou disfuncional. Mãe solteira ou casal gay. É uma configuração nova. Ela preenche este espaço. É o personagem que pouco se insinua. No reencontro de Cyril com Guy, ela se mantém afastada, ou quando este lhe explica suas razões para a atitude adotada, apenas o escuta. Há nela uma passividade enganosa. Solitária, ela vê em Cyril o filho, o amigo, aquele que torna sua vida aceitável. Percebe-se isto quando ela lhe confia tarefas cotidianas. É o olhar da mãe e da amiga.
 

     Além destes fortes instrumentos dramatúrgicos, dois outros se sobressaem: a introdução do traficante na narrativa e a vingança da vítima de Cyril. 1 – O traficante como ameaça à Cyril: Uma situação introduzida pelos Dardenne para desvendar a intenção do garoto adiante. Como inexistem pistas explícitas no filme, o espectador torce pro garoto não cair nas garras de Wes (Egon Di Mateo). A situação se inverte quando a intenção dele, Cyril, aparece, gerando reação violenta do pai. É interessante porque Cyril mostra-se mais esperto que o traficante, sem que este o perceba.
 

      2 – A pena pelo erro: A redenção de Cyril vem na forma de vingança de sua vítima. Mas sua maneira de aceitar a punição beira o masoquismo – é a redenção pela dor. Nada tão longe da religião. Apenas pega sua bicicleta e deixa o local onde foi castigado. Um grande achado para um pequeno filme. Simples, sem grandes ambições, que por isto se revela grande e ambicioso. O menos termina sendo mais em seus múltiplos significados.
O Garoto da Bicicleta” (“Le Gamin au Vélo”). Drama. Bélgica/França/Itália. 2011. 87 minutos. Fotografia: Alain Marconi. Roteiro/direção: Jean-Pierre e Luc Dardenne. Elenco: Thomas Doret, Cécile de France, Jérémie Renier, Egon Di Mateo.
 

(*) Grande Prêmio do Júri Cannes 2011.

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