“O Céu Sobre os Ombros”: Drama dos invisíveis

 Em drama confessional, diretor mineiro Sérgio Borges traz para a tela os marginalizados, seus anseios, impasses e formas de sobrevivência

           A primeira reação a “O Céu Sobre os Ombros”, do diretor mineiro Sérgio Borges, é de estranhamento. Não pela dificuldade de enquadrá-lo em algum gênero, mais pelo desconforto causado pela forma como estrutura o filme. Remete ao “Cinema Marginal” dos anos 60/70, tentativa de se opor ao “Cinema Novo”, focando muitas vezes no lumpesinato ou nos marginalizados urbanos (`A Margem´, de Ozualdo Candeias). Desta forma, o diretor e sua coroteirista Manuela Dias fogem ao “esteticamente perfeito” do cinema brasileiro atual. Muito bonito, mas carente de conteúdo e originalidade.

        Para o espectador acostumado a este tipo de filme pode ser um choque. “O Céu Sobre os Ombros” não tem eixo principal, nem amarra os personagens a uma história. Eles vão surgindo, pondo a cara na tela, soltando seus impasses, sem ligação alguma uns com os outros. Justifica, assim, chamar suas sequências de entrechos; ou seja, cada uma delas vale por si, sem desencadear a ação seguinte ou criar sentido para envolver o espectador até o desfecho.  Não há diálogos, salvo numa ou noutra sequência, como o desabafo de Lwei (Lwei Bakongo) aos amigos no bar ou de Everlyn (Everlyn Barbin) com seus parceiros de sexo à noite na rua.

        Predominam solilóquios (falar consigo próprio), monólogos, silêncios. Tampouco se usa técnica hollywoodiana de campo e contracampo, para estabelecer o diálogo entre dois personagens. Simplesmente um fala, o outro ouve.  Embora haja liberdades com a linguagem cinematográfica padrão, Borges não foge desta nos 92 minutos do filme. Trata-se de aparente contradição, pois sua variação serve aos propósitos do diretor. De “estética suja”, de estar ligado ao confessional, ao ambiente em que se dá a “ação”.

         É quando projeta sua diferença. Traz para a tela pessoas/personagens, ambientes, linguagem da rua, do cotidiano dos “invisíveis”. Everlyn e Krishina são afrodescendentes, Lwei, afroportuguês. Everlyn é transexual, Krishina, operador de marketing, budista, atleticano, Lwei tenta se fixar como escritor, livre pensador, filósofo.  Everlyn é professora, profissional do sexo. Têm algo em comum: todos são solitários. Vivem enfurnados em seus minúsculos cômodos. Daí, serem invisíveis. O sistema não os enxerga, o espectador mal sabe deles, a sociedade os marginaliza. Deriva daí a frase lapidar de Everlyn: “Não gosto de ser chamada de profissional do sexo, prefiro p…”.

Erverlyn é o único
Ser bem definido

       De que se trata então o filme? De dar visibilidade aos invisíveis, para além das páginas policiais da mídia burguesa, dos programas de auditório que os estigmatizam, das classificações das pesquisas sociais que os tipificam. O filme se articula em cima disto: o que fazem para escapar aos padrões burgueses, à moral da classe média, à sua estratificação em classe C, D, E (ou alguém acha que os colocarão na B) para “integrar-se” aos padrões de consumo. Sobretudo para fugir dos nichos de consumo criados para enclausurá-los, pois evitam que se misturem aos demais segmentos de classe, mantendo-os, dessa maneira, sob controle. É segregar sem definir.

       Nichos para os afrodescendentes, os GLBTs, os espíritas, os com deficiência, para não incomodar “os incluídos?” Não é à toa que Lwei diz que não quer mais conviver com ninguém, salvo o seu restrito núcleo de amigos. “Estou cheio”, diz. Justo ele, esforçando-se para terminar seus escritos, sem se fixar em nenhum deles. E seu único pensamento é para o filho pequeno, incluído no grupo de necessidades especiais. Adverso de Krishina (Murari Krishina), cuja vida é padrão: trabalho, religião, diversão. Suas aspirações estão voltadas para os grupos sociais aos quais pertence. Principalmente à torcida do Atlético Mineiro.

       É na torcida organizada que ele se socializa. Não só ele, como a maioria dos torcedores de futebol Brasil afora. Encontra na torcida organizada sua única forma de pertencer a um grupo social. É onde canaliza sua energia, seu ódio, sua carência de coesão social. Proibir-lhe este canal, é condená-lo à invisibilidade. Outros canais de organização social existem; principalmente as organizações políticas que impulsionam seus anseios, mas a estrutura capitalista (entidades patronais, organizações direitistas e religiosas, mídia burguesa) afasta-o social, política e ideologicamente, estigmatizando-as. Termina condenando-o a ser tão só consumidor, não agente transformador.

       Num filme que se estrutura, desestruturando, dois dos três “personagens” são mais arquétipos, não agem enquanto ser, aquele que move a ação ou se define a partir do conteúdo, ou da proposta do diretor. Krishina e Lwei pertencem a esse grupo. Quem permanece na mente do espectador, após o súbito fecho, é Everlyn. Não por ser transexual. Ela é mais do que isso. Define seu espaço no filme, torna-se visível na sala onde ministra curso de sexualidade, e, sobretudo, torna clara sua opção pela rua. Sem neura ou culpa. Mesmo que desconcerte e seja vista como negativa, é um personagem positivo. Ajuda a abrir caminhos.

O Céu Sobre os Ombros”. Drama Confessional. Brasil. 2009.92 minutos. Roteiro: Manuela Dias, Sérgio Borges. Fotografia: Ivo Lopaes Araújo. Direção: Sérgio Borges. Elenco: Everlyn Barbin, Lwei Bakongo, Murari Krishina.

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