Dia de finados


Miguel Arraes morreu há seis anos. A multidão que ocupou o cemitério de Santo Amaro, no enterro, não é a mesma que passeia pelas ruas de túmulos, no dia de finados. Na tarde de um dia de outubro de 2005, viu-se um povo nada triste, porquanto dava mostras de crença na sobrevivência da obra deixada pelo governador. O mesmo se viu no cortejo que seguiu o caixão com Gregório Bezerra, também enterrado numa tarde de outubro, há vinte e oito anos. Houve quem jogasse papéis picados das sacadas de prédios, na derradeira saudação ao comunista que fora preso pela primeira vez aos dezessete anos; quatro anos e sete meses por apoiar uma greve operária; na Casa de Detenção, “uma instituição medieval”, no dizer do próprio.

No dia de finados, viu-se uma multidão rala no cemitério de Santo Amaro; inda que ruidosa, mas passeando de modo quase prosaico sobre a areia seca das ruas entre as lajes. O túmulo de Arraes não é suntuoso, está numa esquina e tem ares de uma moradia pequena, asseada, enfeitada de flores regadas por mãos zelosas. A grama reluz em volta e na frente de uma laje com pouco menos de um metro de comprimento, e meio de largura; nas margens, plantados, há cravos e margaridas; tudo de tamanho pequeno, combinando com a altura da laje, rente ao chão. “Todo ano eu venho aqui, olhar a cova de doutor Arraes”, diz o aposentado José Rosa, sentado num túmulo em ruínas, à sombra de um fícus. “Tinha sempre dois, três chapéus na grama. Este ano, não, ou levaram pra ser usado.” Refere-se ao Programa Chapéu de Palha, criado no último governo de Arraes, que beneficiou camponeses.

Ele observa a bandeja de ferro, soldada em quatro hastes também de ferro; em cima, dezenas de velas brancas ardem com um fulgor que não destila tristeza; desfia a história do governador que, sem o paletó cinza, descera a escada do palácio para, sem segurança, tomar café pequeno na Sertã; a pé, margeando o rio Capibaribe na rua do Sol. O cigarro no canto da boca, dando espaço ao cumprimento da gente em volta. José Rosa acendera um maço de velas na bandeja. “Eu trabalhava num engenho em Nazaré da Mata, trabalhava na limpa e enfiando maniva na terra. Ganhava por braça, quase nada. Aí doutor Arraes fez valer o salário do camponês. Foi quando eu comprei um rádio ABC, e comecei a escutar o noticiário.”

Sopra um vento tímido. As velas não se apagam porque há paredes de folhas de ferro nos quatro lados da bandeja. Duas mulheres, idosas, conversam; há um culto ao passado na memória de cada uma. A bandeja fora deixada por familiares do governador, na remota tarde do enterro. Elas apreciam o lume balouçante em cada pavio, apreciam a bandeja, julgando-a a continuação da administração popular que durou só dois anos. As duas e o aposentado compraram, cada um, um maço de velas; no portão do cemitério, atraídos pelo pregão festivo da vendedora – “Dois reais. Promoção de finados!”

Três estudantes de ciências sociais, na rua anterior à do túmulo do governador, abordam os visitantes; com um questionário, identificam o perfil de quem celebra o dia como uma festa pagã. Em frente à capela, o coro de moços de igreja, entoa uma música triste, rogando salvação. O toldo, na frente, protege do sol uma multidão pequena, comprimida. Na porta lateral da capela gótica, três homens de terno preto, seguram cada um instrumento de música; em caixas pretas. Espreitam famílias que não medem a pecúnia para ter os mortos homenageados na beira da cova.

O coro se arrasta sob o olhar severo do padre com o paramento roxo no peito, na cintura. Os três cantadores, feito corvos pachorrentos, afastam-se. Seguem rumo ao túmulo de João Santos, o usineiro morto em 98. As lajes de mármore ocupam um terço da rua; não é um túmulo, é um templo lustroso, cercado por grossas correntes; como a cancela de acesso à Usina Santa Teresa. Está a poucos metros do túmulo de Miguel Arraes.

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