A Grécia de Marat?

 

 "Que querem dizer nas nossas fronteiras esses grupos de emigrados e esses exércitos que avançam para nos apertar em um círculo de ferro? Que fazem os nossos ministros? Por que os bens dos emigrados não são confiscados? E queimadas as suas casas? E postas a prêmio suas cabeças? Nas mãos de quem estão as armas? Na dos traidores. Quem comanda as vossas tropas? Traidores, traidores, traidores por toda a parte. Cuidado! Um grande golpe se prepara, prestes a rebentar. Se não tratarem de evitá-lo com um outro, súbito e mais terrível, adeus povo e adeus liberdade."

O trecho acima foi escrito por Marat, revolucionário jacobino, há mais de dois séculos. Se vivo fosse e estivesse em Atenas, participando da reação contra a ofensiva da lógica financista, creio que o "Amigo do Povo" poderia repetir a advertência. Com algumas diferenças, tragicamente para pior. Os emigrados, em sua nova versão, já estão dentro da fortaleza, como o Marquês de Lafayette no tempo de Luis XVI. O presidente da França, Nicolas Sarkozy, a chanceler alemã, Angela Merkel, e os presidentes do Conselho Europeu e da Comissão Europeia, Herman Van Rompuy e José Manuel Durão Barroso, ameaçam bloquear o sexto lance de ajuda internacional à Grécia, cerca de 8 bilhões de euros, caso o primeiro-ministro George Papandreou não desista de convocar um referendo sobre o plano de resgate financeiro ao país.

O tacão do capital, sob a máscara da social-democracia, metodicamente se esmera em mostrar quais são os limites da esfera pública e da democracia dentro do capitalismo. Nos principais jornais europeus se podem ler informações que, de tão repetidas, se instituem em verdade: a economia grega está arruinada, e pode cair no precipício se permitir que a ação política soberana se manifeste. O povo, em toda a parte, é visto como um desvio indesejável, e como tal deve ser tratado, sob pena de se caminhar rapidamente para a hecatombe social.

O mais sensato é a submissão incondicional a um ajuste fiscal que estabilize a situação. E para estabilizar é necessária uma política fiscal austera, com cortes dos salários dos funcionários públicos, demissões, corte das contribuições sociais e reforma da previdência social. Mais ainda: o importante é enfraquecer o Estado, consolidando o poder de organismos multilaterais, das instituições financeiras e a capacidade de chantagem das agências classificadoras de risco.

Sem respeito aos mais elementares Direitos Humanos, o risco da operação é mínimo. Ela compreende a venda de um país livre de qualquer passivo, na medida em que os trabalhadores, destituídos de sua própria história, devem acreditar que fizeram parte desse plano de "recuperação" e concordaram com a venda. Nunca o capitalismo, como destacou Saul Leblon, foi tão transparente. A taxa de lucro é o critério de verdade.

Os Estados burgueses, mesmo os mais liberais, não permitem o exercício de qualquer tipo de poder que ponha em risco a aceleração de processos acumulativos. Não basta lutar pela ampliação dos direitos democráticos, pela liberdade para todos os poderes políticos, pelo sufrágio universal, apesar da importância que todos estes direitos têm. Ou aprofundamos o pensamento crítico, questionando os fundamentos que alicerçam uma racionalidade econômica estruturalmente falida, ou nossas conquistas oscilarão ao sabor das cotações do mercado. O que está acontecendo na Grécia não é acidental, um ponto fora da curva. É bom retomar a crítica marxista que nos ensinou a localizar a "ilusão liberal", na sua afirmação da independência da sociedade civil – como espaço do livre jogo dos egoísmos – face à ordem política. Não há mais como ignorar a crescente redução desta às articulações do grande capital, ao jogo da dominação e das coerções inevitáveis.

Marat foi apunhalado por Charlotte Corday quando tomava banho. Os sinais que vêm da terra de Péricles são inequívocos. Os girondinos voltaram a encher a banheira.

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