“Meu País”: Burguesia doentia

Em seu filme de estréia, diretor brasileiro André Ristum usa uma família burguesa esfacelada para traçar um perfil do Brasil atual

      A ambiguidade de “Meu País”, filme de estréia de André Ristum, começa pelo título. Em princípio trata de uma família burguesa que se esfacela após a morte do patriarca. Mas pode ser também metáfora de uma nação cuja burguesia está mergulhada na corrupção, jogatina, crime organizado, noitada em clubes, tendo filha ilegítima e empresas falidas sobrevivendo na UTI. Trafega, na verdade por ambos universos, usando a velha história de irmãos de perfis opostos que se defrontam em meio a uma crise para a qual nenhum deles está preparado. O fato detonador desse confronto é a morte do patriarca Armando (Paulo José), que traz de volta ao Brasil o filho mais velho Marcos (Rodrigo Santoro). Aqui reencontra o irmão Tiago (Cauã Reymond), que não dá conta do problema deixado pelo pai.

      Este é, enfim, parte do conflito familiar que se estabelece. À medida que mergulha nos negócios herdados do pai, Marcos dá conta do país que deixou para viver na Itália, onde se tornou empresário de sucesso no setor financeiro. É também onde ambos universos se entrelaçam. Ristum e seus roteiristas Marco Dutra e Octávio Scopelliti mantêm os entrechos interligados, não se afastando deles em momento algum. Embora, na segunda e terceira parte do filme deem o veredicto de que o país real esteja doente, o tratam com uma delicadeza e sensibilidade que o torna recuperável. Sua narrativa, dotada de clareza e força, torna isto visível desde o início.

     Ao tomarmos contato com Marcos, ele é o retrato do especulador financeiro, interessado mais na jogatina do mercado de risco (hedge), que nas relações humanas, inclusive com a mulher, a italiana Giulia (Anita Caprioli). É ríspido, frio, desligado do espaço em que se desloca. Ristum usa a fotografia de Hélcio Alemão Nagamine para matizar seu estado psicológico: os ambientes ao seu redor são brancos, em tom branco e preto. É só um cérebro, nada mais. É o típico bookmaker para o qual nos negócios contam mais estatísticas, pregões, índices e lucratividade. Ao tomar contato com os negócios do pai, não se interessa por eles. Perdeu o elo com suas raízes, seja a família, seja o Brasil.

     É o oposto de Tiago, típico “filhinho do papai”, mais interessado em jogatinas, noitadas, sem qualquer senso empresarial. Ao se reencontrar com ele, Marcos o trata com desdém, quase o anulando. No entanto, mais que retocar a velha história do confronto entre irmãos, Ristum faz de Tiago a metáfora do filho que é o reflexo do pai. Enquanto o filho está sob o controle do crime organizado, mostrando o quanto a burguesia trafega pelo “alto submundo”, o pai era dado a falcatruas, usando o patrimônio para duplas garantias. Um subprime às avessas. A ponto de não mais conseguir honrar seus compromissos, pondo em risco sua empresa na área da construção civil.

Irmã doente é o
ponto de equilíbrio

     Estes entrechos, dos mais significativos, fragilizam a visão que Marcos tinha do pai e, ao mesmo tempo, é o ponto de desnudamento do irmão Tiago. É também o que o faz querer retornar o mais rápido à Itália, premido também pela crise do sistema financeiro europeu. Então, Ristum, entrelaça-lhe o entrecho de equilíbrio: a doença que acomete a burguesa do país, ainda que, talvez, não tenha sido esta sua intenção. O faz através de Manuela (Débora Falabella), filha ilegítima de Armando, meia-irmã Marcos e Tiago. Com sofrimento psicológico, ela vive internada numa clínica de alto luxo. É o contato de Marcos com ela que faz com que os dois universos se fundam: o da família e o da burguesia brasileira. Dando, assim, traços viscontinianos a seu filme: as falcatruas de uma família burguesa como metáfora para a crise moral do país (“Vaga Ursa Maior”, “Os Deuses Malditos”).

     Conta muito em “Meu País” que Manuela seja o ponto de equilíbrio do filme. É frágil, indefesa, pura, sensível. Com ela, o gélido Marcos irá recuperar suas raízes e desprender-se das amarras que o prendem à Itália, embora a elas não renuncie. A metáfora do país se reafirma à medida que Ristum mostre o quanto ele precisa entender as mudanças que se lhes apresentam. E ele, ao tomar conta de Manuela, vai reaprendendo e vendo como guiá-la para que seu sofrimento psicológico não se agudize, pondo em risco sua sobrevivência.

     Assim, Tiago, que a trata como “monga (débil mental)”, um preconceito inaceitável, também é trazido por ela para o universo familiar, longe do clima  nublado do país. Desta forma, o que conta é a maneira como Ristum articula os entrechos, deixa o universo familiar sobressair através de personagens bem delineados. “Meu País” não é, portanto, intricado, difícil, passeia pela obra de arte, mas trafega pelo popular, buscando identificação com o grande público. E sem denúncia fácil, mostrando o envolvimento da burguesia brasileira com o crime organizado dos cassinos clandestinos, que, na verdade, transita também pelo tráfico de drogas. Não é apenas a classe média que chafurda neste mercado submerso, também a burguesia o alimenta. É inegável, há muito tempo.

Meu País”. Drama. Brasil. 90 minutos. 90 minutos. Roteiro: Marco Dutra, Octávio Scopelliti, André Ristum. Fotografia: Hélcio Alemão Nagamine. Música: Patríck de Jonh. Direção: André Ristum. Elenco: Rodrigo Santoro, Cauã Reymond, Débora Falabella, Paulo José, Anita Caprioli.

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