Panorama do Mundo Árabe

A mais liberal revista de finanças e muito respeitada, uma espécie de bíblia do capitalismo liberal, publicou um caderno especial em 25 de julho passado, intitulado Waking from its sleep no The Economist. O endereço que publicamos aqui é pago. Tratou extensamente sobre o mundo árabe e seu despertar.

A vigorosa e excelente revista Carta Capital que representa a revista inglesa no Brasil em termos de conteúdo editorial, prestou-nos excelente serviço ao traduzir e publicar, na edição 557, de 5 de agosto, um encarte de 17 páginas. Gostaria de compartilhar com meus leitores esta semana, muitas das suas conclusões e análises.

O Amanhecer no Oriente

O Império Árabe já foi um dos maiores impérios da terra em toda a história da humanidade. A civilização árabe legou à humanidade grandes descobertas, invenções, tratados científicos. No entanto, essa época já pertence a um passado distante e saudoso para muitas pessoas. Hoje o mundo árabe vive dilemas, dramas, problemas políticos e econômicos de grande monta.

Quem são os árabes e o que têm em comum?

• Consideram-se países árabe 22 países, incluindo a Palestina que não tem ainda seu estado formal, apenas uma Autoridade;
• Consideram-se árabe hoje em torno de 350 milhões de pessoas, que professam religiões as mais distintas, sendo a majoritária a islâmica, mas têm também coptas, cristão, e ainda etnias diferenciadas como os berberes na África, curdos no Iraque;
• A reportagem afirma que “os árabes não são um grupo único ou religioso, nem são um grupo único linguístico”. Há certa razão nisso. Existem muitos dialetos e o árabe falado no Marrocos não é compreendido no Líbano;
• A única experiência de unificação real desse mundo foi adotada à época do Pan Arabismo Árabe de Gamal Abdel Nasser com a República Árabe Unida – RAU, que uniu Egito e Síria em 1958 e durou apenas três anos;
• A experiência do Conselho de Cooperação Árabe, à época da Guerra do Iraque de 1991, durou pouco tempo e a união dos países árabes do norte de África acabou fracassando;

Fracasso da Política de Bush para a Região

• Parte dos chamados neocons – direitistas que mandaram nos EUA na era Bush (2001-2009) – estavam convencidos que a política que alimentava e movia os ditos “radicais” islâmicos era a falta de democracia e liberdade no Oriente Médio;
• A partir de tentativas de impor a tal democracia estadunidense de fora para dentro, vê-se hoje que essa política encontra-se derrotada; em todos os países árabes;
• A instalação da democracia no Iraque nunca fez parte dos discursos de Bush. Isso aparece bem depois, quando ficou claro a mentira sobre as tais armas de destruição de massa;
• De qualquer forma, os “clientes” americanos preferenciais, como Egito e Arábia Saudita, foram alvos preferenciais dessa “nova” política chamada de “agenda da liberdade”;
• O caso mesmo do Iraque é o mais emblemático. Sob patrocínio estadunidense, os iraquianos foram às urnas três vezes em 2005; e nada mudou; elegeram um governo fantoche pró-americano, em uma aliança tática de xiitas com o exército ocupante; sunitas passam à oposição;
• Governantes árabes foram pressionados, de certa forma, a promoverem reformas políticas e certa abertura; mas viveram uma imensa contradição e que chegou a irritar os aliados dos Estados Unidos na região; até porque, levada em última instância a tal abertura e democratização, ainda que limitada, poderia apeá-los do poder;
• Ainda assim, pequenas concessões foram feitas; o próprio Hamas foi autorizado a participar das eleições em janeiro de 2006, sagrando-se vitorioso; no Egito, a Irmandade Muçulmana, que faz oposição ao presidente Mubarak, no poder desde 1981 – há 28 anos! – fez vinte por cento das vagas no parlamento;
• As oposições são profundamente perseguidas em todos os países; à exceção do movimento dos palestinos, onde, apesar da ocupação, vive-se a maior democracia em toda a região, a regra geral é a restrição às liberdades políticas, aos partidos laicos e mesmo aos religiosos e confessionais que não comungam com os detentores do poder;
• Há um debate sobre porque a mensagem dita reformadora e de levar democracia para o Oriente Médio falhou em toda a região? Alguns analistas dizem que é porque Bush era o pior mensageiro possível, desmoralizado; mas, havia uma contradição visível entre o discurso “democrático” e as torturas no Iraque e a base de Guantánamo;
• Outros apontam as contradições em levar a democracia e invadir um país árabe importante e destruí-lo praticamente inteiro, inclusive seus sítios arqueológicos históricos mais importantes e matar mais de meio milhão de árabes para isso;
• A agenda Bush esta, portanto, liquidada no Oriente Médio árabe. O marco que pode mudar as coisas, apontando em outra direção, foi o histórico discurso de Obama no Cairo, em uma Universidade islâmica. Ele tenta, pelo menos na retórica, mostrar que os EUA vão tentar um posicionamento mais equilibrado com relação á Palestina e sinaliza em construir uma nova relação com o Islã. Ele enaltece as virtudes da democracia, mas não a endeusou. Falou que as nações “dá vida a esse princípio da sua própria maneira, baseada nas suas tradições de seu povo”;
• Com isso, Obama diz de forma clara que não imporá a sua forma de governar, a sua democracia ocidental; a palavra “respeito” substituiu a palavra “liberdade”;
• Mesmo nas chamadas Repúblicas Árabes, a sucessão muitas vezes vem de pai para filho. É o caso da Síria de Bachar El Assad, que sucedeu seu pai em 2000. Na Jordânia, Marrocos e Arábia Saudita, todas as monarquias com profundas restrições às liberdades, já são governados há algum tempo por sucessores de seus pais ou parentes, mas nem por isso muitas coisas se alteraram na forma de governar;
• O mais longevo entre todos, um coronel, que governa uma República, a Líbia, Muammar Khadafi, esta no poder desde 1969, há 40 anos!;

Problemas econômicos

• Segundo alguns analistas ouvidos pela reportagem, os problemas econômicos são tão profundos e intensos, que consideram a região como em estado “pré-revolucionário”; exageros à parte, é verdade que boa parte do dinheiro do petróleo – principal fonte de renda da maioria dos países – fica com poucas famílias que se enriquecem cada vez mais em detrimento das condições de vida da maioria da população;
• É verdade também que o desempenho em termos de investimento, fica abaixo da média, seja no comércio, educação, desenvolvimento e mesmo cultura;
• Um dado é estarrecedor: entre 1980 e 2000, Arábia Saudita, Emirados, Jordânia, Síria, Kuwait e Egito, registraram, juntos, nos EUA, 567 patentes. No mesmo período, só a Coreia do Sul registrou, sozinha, 16.328 patentes e Israel outras 7.652. Um abismo de diferença; o mundo árabe hoje nada tem com a época de seu esplendor de ciência, pesquisa, cultura etc.;
• Em que pesem grandes investimentos, decorrentes da renda do petróleo por parte dos governos, as condições de vida, concentração de renda, empregabilidade, não melhoraram nos últimos 20 anos; uma população cada vez mais jovem, na média 26 anos, e a empregabilidade muito baixa;
• Fala-se em crescimento de até 40% da população árabe atual de 350 milhões; isso acrescentará 150 milhões de pessoas, atingindo em 20 anos, meio bilhão de habitantes; isso pode fazer ampliar a dramática situação de um em cada cinco jovem árabe, encontrar-se desempregado

Aspectos políticos

• Pouco mudou nas últimas décadas no mundo árabe; pouca participação popular; partido políticos controlados, tolerados; restrições às liberdades de manifestação e expressão;
• Como dizem os estudiosos, “a ordem política é opressiva e a democracia um sistema falso e oco, incapaz de acomodar a vitalidade do povo”;
• As eleições são realizadas para permitir que o partido do governante (e não no governo), seja sempre vitorioso e obtenha a maioria; mesmo esses parlamentos que funcionam, quase não têm poder algum; as leis são feitas por técnicos e os parlamentos funcionam como meros homologadores, carimbadores das leis;
• Mesmo no Líbano, a mais festejada democracia na região e enaltecida no Ocidente, é, na verdade, um sistema de baronatos confessionais. Nenhum governo, nunca, consegue uma maioria estável para governas e implantar o seu programa de governo e de ação; têm que fazer acordos e alianças, às vezes as mais díspares possíveis;
• Uma grande conclusão da Economist: ter permissão para concorrer nas eleições, nada tem a ver com a perspectiva de vencer eleições e mudar o comando político no país; isso é outra coisa completamente diferente; assim, no caso do Marrocos, por exemplos. É um país com longa tradição de pluripartidarismo. Mas, a oposição nunca tem a perspectiva de vencer as eleições;
• Há dois tipos de partidos no Oriente árabe: os confessionais e religiosos, bem mais fortes e os laicos e seculares; praticamente nunca fazem alianças (honrosa exceção nas eleições libaneses de junho passado);
• Encontra-se em baixa todas as forças e correntes políticas que um dia foi muito forte no mundo árabe, entre elas o Pan Arabismo, de Nasser e o Baatismo, no Iraque e na Síria; mesmo os partidos islâmicos, encontra-se em uma encruzilhada, pois estão vendo certo esgotamento de suas bandeiras, de suas teorias, de suas propostas, que não mais encontram apelos populares;
• Fala-se na simples razão da “exaustão”. “A exclusão do poder central, do governo, começa a minar a motivação até do mais ardente dos partidos políticos. No Marrocos, onde partidos podem competir, mas nunca ganhar, os eleitores vão perdendo a fé na capacidade do PJD de conseguir as menores reformas possíveis”;
• O maior slogan dos islâmicos e de seus partidos, “o Islã é a solução”, não encontra mais apelo entre os eleitores; pode-se dizer algo como “fadiga de material”, esgotamento;
• Os islâmicos precisam ver que precisam fazer alianças amplas, para conquistarem maiorias e para isso devem trabalhar com os partidos seculares, laicos; como diz a reportagem, em muitos países árabes, “a oposição deu xeque mate em si própria”;
• A última revolução realmente popular registrada no Oriente Médio, num país que não é árabe, mas persa, ocorreu no Irã em 1979, há exatos trinta anos; uma aliança entre partidos seculares, o islã político e a esquerda, deu certo e mudou profundamente o país, sendo derrubada a mais sanguinária ditadura pró-americana existente em toda a região;
• Mas, há que se distinguir entre revolução política e a revolução social, de costumes; ocorrem muitas mudanças no Oriente árabe; a fertilidade cai entre as mulheres, os jovens e as mulheres se escolarizam mais; os jovens têm novas aspirações;
• Empresários vêm entrando na política, mas para defender seus interesses específicos; são extremamente despolitizados;
• Os árabes desfrutam hoje, de forma que não se conhece precedentes, o se maior acesso às informações e ao noticiário; um desses motivos é a TV Al Jazeera, muito progressista e séria, para os padrões do mundo árabe, com jornalismo equilibrado, mas nunca neutro;
• A causa palestina á a causa unificadora e quase sagrada no mundo árabe; a TV Al Jazeera reflete esse ponto de vista e seu diretor geral é um palestino;

Para onde irão os árabes?

Esta é a parte final da reportagem especial da Economist. Pode não ter respostas certas, mas algumas questões e pistas são apresentadas. As conclusões:

• Quatro são as grandes causas dos conflitos no OM: concorrência por energia; conflito com Israel pelas terras palestinas; a fraqueza da condição do estado árabe na atualidade e a estagnação dos políticos;
• Quatro grandes poderes não árabes disputam corações e mentes dos árabes: EUA, o mais forte e poderoso; Israel; Irã e em grau menor a Turquia, cujo governo do Partido Justiça e Liberdade, é moderadamente islâmico;
• Os Estados Unidos seguem sendo os maiores interessados em petróleo árabe, em tese protetor da Arábia Saudita e seus vizinhos do Golfo;
• Fica claro o erro extremo que Bush cometeu com a sua agressão ao Iraque; para muitos árabes essa atitude ajuda a rejeitar uma política de coexistência pacífica com Israel; tal conflito acirrou as disputas entre sunitas e xiitas, entre esquerda e direita, entre seculares e religiosos;
• A maioria dos árabes começa a julgar seus líderes e governantes mais pela sua capacidade de resistir a Israel do que pelas suas propostas de reformas e mudanças políticas, inovações etc.;
• O Hezbolláh é visto, pelo menos no Líbano, como um pessoal incorruptível, lutador da causa árabe e palestina e autosuficiente;
• A impressão que passa hoje é que o mundo árabe esta dividida por uma espécie de frente interna em que os Estados Unidos são considerados moderados (gestão Obama) e o Irã lidera uma frente mais radical de resistência;
• Pode não ter sido coincidência a derrota do Hezbolláh em junho, quando, uma semana antes, no Cairo, Obama estendia a mão ao mundo árabe e muçulmano;
• É possível que uma nova diplomacia americana, mais equilibrada, possa desarmar espírito no OM, pelo menos entre os palestinos e iraquianos que vivem a ocupação;
• Para Sadik Al Azam, da Universidade de Damasco, os árabes vivem o Hamlet moderno, “ser ou não ser, eis a questão”; isso no sentido de serem "condenados a uma tragédia sem trégua, eternamente hesitantes, retardando e vacilando entre o novo e o velho”.

Acho que o velho e novo mundo árabe ainda vai chamar muito a atenção do Ocidente e voltar a dar imensas contribuições para toda a humanidade como no passado.

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