Submarino: Males herdados

Tragédias sucessivas transformam dois irmãos em seres alheios à estrutura social, neste filme do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg

      No cinema do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg as relações entre pais e filhos nunca são menos que dilacerantes. Em “Festa de Casamento”, uma reunião familiar desanda em atritos entre pai e filhos. Neste “Submarino”, a turbulenta relação acaba em tragédia. Mas ao contrário do primeiro, há nele um olhar otimista, como se ele dissesse que, apesar das desavenças, pode haver espaço para o afeto. Ainda que este venha acompanhado de autopunição e de uma inesperada redenção com marcas profundas no corpo.

      O filme é centrado em Nick (Jakob Cedergren) e seu irmão (Mads Broe Andersen), criados pela mãe alcoólatra. O terceiro irmão, o bebê Martin, é o pólo desencadeador deste drama sobre o subproletariado dinamarquês. Nick e o irmão sem nome no filme, após a primeira tragédia, abandonam a mãe e seguem seus caminhos. Ele passa a viver num abrigo estatal, depois de cumprir sentença por roubo, e a partir daí perde contato com o irmão. Este é o aspecto mais significativo do filme: o universo daqueles que se desligam da estrutura social para viverem sem perspectiva alguma.
 

      Num país com ampla proteção social, como a Dinamarca, a rejeição de Nick se dá pela recusa de integrar-se ao status quo, no caso socialdemocrata. De ter perspectivas de futuro e de bem-estar, coisa fora de seu universo. Perambula pelas ruas num andar pesado, fumando e bebendo compulsivamente, como se tudo ao seu redor o violentasse. Nada nele está visível, ele é apenas alguém que se torna invisível na multidão. Está próximo a depressão ou a explosão irracional contra os que o cercam.
 

     Há nele algo de punitivo, de quem se culpa pelo que aconteceu ao bebê Martin, mas descarrega tudo sobre a mãe, de quem nem faz questão de lembrar. Nesta espécie de limbo encontra amparo amoroso na vizinha solitária Sofie (Patrícia Schumann). Embora a trate mal, pois seu desapego é visceral, eles se entendem. Mas não se trata de livre escolha, seu comportamento é consequência da desagregada estrutura familiar, num país cujas contradições são próprias da Europa em crise. Nick está, enfim, entregue a si mesmo, sendo produto de estruturas que o alcançaram sem que percebesse. É a completa alienação do ser numa sociedade que se diz igualitária.
 

     Vinterberg e o autor do romance homônimo, Jonas T. Bengtsson, o constroem como alguém tragado para a imprecisão social. Entretanto, seu amigo Ivan (Morten Rose), grandalhão, dado à brutalidade patológica, faz emergir dele outra faceta: a de ser solidário. É o que faz o espectador se identificar com ele.
 

Martin é o elo
do passado

      Com esta mudança, Vinterberg passa a tratar da vida do irmão sem nome. Este vive com filho pequeno Martin (Gustav Fischer Kjaenulff), num apartamento classe média baixa. É tido como pessoa calma e receptiva. Se Nick, a exemplo da mãe, é alcoólatra, ele se mostrará igualmente danoso para si, o filho e o irmão. Se os entrechos com Nick incomodam pela crueza, com ele é pior. A heroína o corrói, mostrando o avançado estágio de dependência em que se encontra. A sequência em que o garoto lhe pede comida e ele lhe mostra a geladeira vazia e a que o garoto espera pelo jantar e ele entra numa overdose, só acordando no dia seguinte, são chocantes.
 

    Aqui, então, a história é outra. É a de quem tentou elevar-se do patamar em que nasceu e sucumbiu ao vício. Tem noção da estrutura social, como bem o demonstra sua conversa com a assistente social e com a professora de Martin. Difere muito de Nick. Suas tentativas são para dar vida digna ao filho, depois do acidente que vitimou sua companheira. A forma como pretende fazê-lo se torna uma armadilha fatal. Justo no instante em que se reaproxima de Nick. E toda a narrativa em tons sombrios, fotografia azul-alumínio de Charlotte Bruus Chistensen e cenários opressivos traduzem a secura da vida de ambos.
 

     Entre eles existe o pequeno Martin, o elo em torno do qual se articulam os entrechos. Trata-se da ponta inicial que ressurge na figura do garoto, tendo a mãe de Nick e do irmão como a fonte aglutinadora. São elos quase imperceptíveis. Mas são eles que explicam a história. Vinterberg divide sua narrativa em dois tipos de entrechos: o de Nick e o de seu irmão, mesclando-os no início e no desfecho. E ao traçar o perfil de ambos aponta seus impasses. Quando eles se reagrupam retomam seus traços originais, sem que possam mudar o que os tornou tão diferentes.
 

      Novas tragédias irão demarcar suas vidas. O sem nome sucumbirá a seus erros, Nick obterá sua redenção através de Martin. Ao contrário do irmão, ele, ainda que violento, tem seu traço de humanidade, de caráter e afetividade. Nos encontros com Ana, sua antiga paixão, e com Martin na Igreja Católica, isto se evidência. Vinterberg retira do filme, assim, qualquer maniqueísmo. Na perspectiva em que Nick se encontra, com as marcas da tragédia no corpo, é como se larga avenida lhe fosse aberta, numa dialética que marca todo ser humano no decadente sistema capitalista.
 

Submarino” (“Submarino”). Drama. Dinamarca. 2010. 110 minutos. Baseado no romance de Jonas T. Bengtsson. Roteiro: Thomas Vinterberg, Tobias Lindholm/Tomas Vinterberg. Direção: Tomas Vinterberg. Fotografia: Charlotte Bruus Christensen. Elenco: Jakob Cedergren, Mads Broe Andersen, Petrícia Schumann, Gustav Fischer Kjaenulff.

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