Luiz Gomes, pintor, restaurador…


Deu-se que Luiz estava só. Pus as mãos entre os gradis de madeira da porta, bati com as palmas das mãos. Ele não ouviu. Resolvi dar um tempo, apreciando do lado de fora, as pedras de cantaria na sala da casa, todas com incrustrações de letras barrocas. É uma sala incomum, um depósito de achados seiscentistas. Até uma grade de ferro de cela de cadeia, ele ali pusera para a relíquia não ser corroída pela ferrugem, visto que a cadeia pública, reformada, convertera-se numa espécie de escritório de cidadania; para a concessão de documentos onde, com chancela presumida, alguém subscreve e dá fé.

Na casa de largura pouca, inda que comprida feito um quarteirão, Luiz Gomes embutira-se entre o que durante toda a vida soubera, soube ser o mantenedor zeloso. Depois de bater três vezes, ele ouviu. Levantou-se da cadeira de assento e encosto de madeira velhos, encerados de tanto uso. Andou apoiando-se nas paredes, os passos curtos, hesitantes; o corpo de 85 anos equilibrando-se com sacrifício. No meio do percurso, no corredor escuro, olhou-me por cima dos óculos; a barba comprida, branca, luzindo como a cabeça de escassos cabelos. Senti remorsos. Ele estava, por certo, tramando nova obra de arte; toda a sua vida fora uma diabrura de pinturas barrocas; um clássico no gênero.

Na sala, baixou a cabeça, reconheceu-me, disse meu nome. A casa, na rua dos Martírios, em Goiana, ele vive recluso sem se dar conta de que está fazendo justiça ao nome da rua. A cidade tem mais de quatrocentos anos. O casario, construído imitando a arquitetura barroca das igrejas, está quase todo mudado, coberto de azulejos coloridos, como falsos maracatus. Também o desgosto de ver Goiana sem a feição de nascença, tornou Luiz Gomes um recluso.

Ofereço meu braço para ele se apoiar, ele não quer, recusa-se como um velho que não se dá por vencido. No corredor escuro, temo que se atropele, choque o dedão no piso de tijolos de barro, nus, como o piso de cozinha de uma casa de engenho. Na cozinha, as louças estão penduradas, dispostas em fila, conforme a prioridade de uso, no armário de madeira. Ali mesmo, vizinho à cozinha, vê-se o sanitário junto ao local do banho. A entrada é alta, mas a porta tem pouco mais de meio metro de altura, do meio para cima, abrindo-se nos dois lados, como asas. Não se vê um fio de cabelo no chão. Tudo justaposto, nada ali é incompatível com o perfil barroco do morador.

Antes de chegar ao ateliê, atravessamos um meio-quintal, pisando tijolos expostos ao sol; num dos lados, há um poço em desuso, profundo, tomado por urtigas e tinhorões. Ele o mantém para nutrir a memória seiscentista.

Sentamos. Já passa do meio-dia. Já me dissera, ele, que comia só duas vezes por dia; não me disse a hora, supus que era de manhã e à noite, para não dormir com fome. Sento-me à vontade. Antes de fazer-lhe a primeira pergunta, deixo que retome o trabalho interrompido por mim. Em sua frente, em cima da mesa coberta de latas de tinta, martelo, lâminas de corte, papéis, há uma tela sendo preparada para ser pintada. Estava colando um morim nos fundos da tela; na frente, ainda sem nada, poria um tecido lonado, grosso, para absorver a tinta. Não me disse como seria a tela, o que pintaria; não me disse para não correr o risco de se comprometer com a própria língua; suas mãos hábeis, mágicas, engendram a forma no fluxo sem arreios do juízo.

Deixo-o falar:

– Não posso ficar sem fazer nada. Estou aprontando esta tela para uma exposição…

Uma exposição! Animo-me. Há vida em Luiz! A notícia me dá ânimo para descobrir minúcias de seus setenta anos de artista plástico. Há quem não saiba… Mas Luiz Gomes, além de pintor, é restaurador, escultor, oleiro, decorador. Morto Jerônimo Gadelha, singular prefeito, colecionador do gênero fêmeo, Luiz colou uma pasta de gesso no rosto do defunto; com o molde do rosto, fez a cabeça, o corpo inteiro. A estátua está na praça.

– Uma exposição!? – atrevo-me.

– É… Se não for para uma exposição, ficará aqui mesmo – um traço de desânimo.

– Fale-me sobre Antônia Leão… – Peço a ele. A mulher morreu faz tempo. Isso exigirá mais esforço da memória de Luiz, da memória e do coração.

Ele interrompe a colagem do morim, põe a mão direita no peito, espreme-o.

– Não tenha pressa. – Tento aliviar. – Vou beber água.

– Traga para mim também.

Vou buscar água para Luiz Gomes, sinto-me benfeitor.

É forçoso notar o contraste do refrigerador com os móveis e utensílios de cozinha. Abro a porta, alivio-me mirando os copos de metal brilhante, limpos, assépticos, um sobre o outro para dar mais espaço na prateleira.

Ele bebe a água com goles módicos.

– Quando bebo água, alivio-me do cansaço no peito.

Há trinta anos, num carnaval, vi-o bebendo cachaça. Já careca, mas os cabelos da barba pretos, retintos. Ele bebia numa colher de sopa, de sorvo em sorvo.

– Antônia Leão era oleira na oficina de Pedro da Louça. Pagavam-lhe mal e seu marido bebia muito. Um dia, convenci-a de que devia trabalhar para si própria, já que tinha barro no quintal de sua casa. O primeiro boneco que ela fez foi um macaco comendo banana; quando fez a cauda, ficou parecendo alguém montado num tripé. Ficou engraçado esteticamente. Ela não sabia escrever. Ensinei-a a pôr as iniciais de seu nome no barro: Anta, com um traço sob o a final. Depois ela moldou canaviais, engenhos, garotos segurando tábuas de pirulitos. Levei suas estatuetas para o diretor do Museu do Açúcar. Ele gostou e encomendou todas as peças dela, todas as peças relacionadas com a cana-de-açúcar. Foi assim que ficou conhecida. Mas como o marido bebia muito, ela voltou para Tracunhaém, onde nasceu. Lá, morreu de um derrame.

Ele fez uma pausa, pôs a mão no peito para conter o cansaço. Alguém entra na casa; é o seu sobrinho que viera para almoçar.

– Quer almoçar conosco? – pergunta a mim, Luiz.

– Não. – Despeço-me beijando-o na testa, ele beija-me na face.

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