Legado de Marx

“Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital”

Leitura de “O Capital” feita pelo cineasta alemão Alexander Kluge avalia legado de Marx na etapa histórica atual

        Dá para imaginar a dificuldade de se adaptar “O Capital” para o cinema. A principal obra de Karl Marx já requer esforço intelectual para quem quer entrar no cerne do capitalismo, ainda mais vertê-la para a linguagem das imagens. Esta é, no entanto, a tarefa que se impôs o cineasta russo Sergei Eisenstein (1898/1948) nos anos 30. Transformá-lo num filme tão gigantesco quanto seu derradeiro filme “Ivan, o Terrível”, dividido em duas partes. Não bastasse isto, ele pretendia estruturá-lo nos moldes da obra máxima do escritor irlandês James Joyce (1882/1941): “Ulisses”, cuja ação se dá em 24 horas. Percebe-se o desafio que ele teria pela frente.
 

         Dada às exigências de produção de tal obra, não só financeira, mas, sobretudo, de concepção, Eisenstein deixou seu sonho irrealizado. O desafio, porém, permaneceu. O cineasta, filósofo e escritor alemão Alexander Kluge (1932) o aceitou. Em 2008, em plena “crise de Wall Street”, ele o enfrentou. O resultado é um documentário que mescla cenas da construção do socialismo na União Soviética e na República Democrática da Alemanha (RDA, 1949/1990), encenação e entrevistas. Com ele, Kluge, como narrador e entrevistador, tem-se um filme de 492 minutos, dividido em três partes: 1ª – 190 minutos, 2ª – 120`, 3ª – 183`.

         Embora Kluge seja cineasta de esquerda, um dos autores do Manifesto de Oberhaysen, ponto de partida do Novo Cinema Alemão, não dá para comparar sua obra com a de Eisenstein (“O Encouraçado Potemkin”). Seus filmes, em seu auge, refletem sobre as dificuldades do artista se tornar dono de seu próprio negócio no sistema capitalista, “Artistas na Cúpula do Circo: Perplexos”, Leão de Ouro no Festival de Veneza em 1968, ou o fracasso de uma jovem alemã oriental em se adaptar no jogo bruto capitalista da Alemanha Ocidental, Prêmio Especial do Júri do Festival de Veneza 1966. E normalmente possuem estrutura do cinema mudo, com intertítulos, narração em off, comentários pontuais e pouca música.
 

       “Notícias da Antiguidade Ideológica” está pontuado por estes recursos. O que se vê na tela está longe, portanto, do que se poderia antever, caso Eisenstein tivesse conseguido concretizar seu projeto. Principalmente porque a estética, a montagem, sua estruturação de “O Capital” está contida em uma de suas obras-primas: “Outubro”, de 1927, produzido pra comemorar os 10 anos da Revolução Russa. É o filme do êxtase, do ritmo frenético, cheio de símbolos: Kerenski mostrado como um pavão, a operária morta pela turba reacionária largada na ponte como o cavalo que conduzia a carroça dos manifestantes comunistas.
 

Kluge analisa o
antes e o depois

       Mas pelo simples fato de aceitar tal desafio, Kluge merece aplausos. Vale-se da oportunidade de realizar seu filme no pós-Socialismo Real. Eisenstein o faria durante a construção do Socialismo na URSS. Teria condição de contrapor o sistema socialista ao capitalista, ele, Kluge, além disso, pode analisar a partir de “O Capital” o que foi a experiência de 74 anos (1917/1991) de socialismo na ex-URSS. E com a “sorte” de fazê-lo em meio à atual crise do capitalismo. Cabe aos seus entrevistados alemães discutir conceitos e categorias de “O Capital”, na confortável situação de contraporem os dois sistemas.
 

       O escritor Hans Magnus Enzensberger tenta com humor analisar a contribuição do Marx economista, filósofo e sua vida pessoal. Mas cabe ao filósofo Peter Sloterdijk deslindar um conceito complexo como fetiche da mercadoria, a visão distorcida de que ela, a mercadoria, existe em função de outra mercadoria, quando na verdade concentra trabalho humano. E ao poeta Durs Grünbein a contribuição do proletário na produção da mercadoria, e ao sociólogo Oskar Negt o valor de troca: capacidade de uma mercadoria adquirir outra; valor de uso: a utilidade do produto para o consumidor (1).
 

     Mas Kluge também encena os esforços da juventude da RDA para entender “O Capital”, registra a construção do socialismo na URSS e as mutações capitalistas na Alemanha de hoje. O faz com humor, usando para isto o ator e diretor Tom Tykwer (“Corra, Lola, Corra”), que satiriza a fragmentação extrema do trabalho no capitalismo moderno. Dá para captar as mutações do sistema capitalista, principalmente neste momento de financeirização extrema, gerando crise sobre crise desde o “Crash de 1929”. A ponto de estendê-la para seu próprio estado e suas estruturas de trabalho e produção.
 

     Exibido na Mostra Alexandre Kluge pelo Ministério da Cultura e a Fundação Clóvis Salgado de Minas Gerais, de 09 a 28 de setembro, no Palácio das Artes de Belo Horizonte, “Notícias da Antiguidade Ideológica”, junto com os dois já citados filmes, mais o emblemático “Ferdinand, O Forte” e a ficção científica “O Grande Caos”, confirmam a capacidade deste inquieto diretor alemão. Menos conhecido que seus pares Rainer Werner Fassbinder, Werner Herzog e Win Wenders, ele é o mais vanguardista e criativo deles. Seu documentário, mais uma leitura de “O Capital” que uma adaptação deste, bem o comprova.
 

Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital”. (“Nachichten aus der ideologischen Antike”). Documentário. Alemanha, 2008, 492 minutos.

(1) Marx, Karl, O Capital, Livro 1, O Processo de Produção do Capital, Livro 1, Editora Difel, 1982, págs. 42,43.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor