No velório

O velório de Cirino deu-se no sindicato. O corpo fora trazido por amigos e vizinhos, no dia seguinte aos tiros, quando a camboa se enchera d’água e de jundiás. A canoa deslizara muda na maré enchente; quatro remadores e apenas um dando conta do rumo da proa, ajudado pela correnteza. O tempo não era de generosidade, mas a brisa farta soprara-lhes o peso, a alma. Com a canoa aportada, os quatro subiram os cinco degraus de cimento do cais. O corpo fora posto numa rede, a mesma em que Cirino dormira nos últimos anos. Em cima, na plataforma, um grupo numeroso os esperara. O acompanhamento, tão mudo quanto a matraca que privara Cirino dos jundiás, subiu a rua da Ponte. Em frente ao Convento do Carmo, das oito janelas do andar de cima, uma se abriu para mostrar a silhueta de um frade com pasmo morto no rosto. Frei Alberto pensou em abrir as portas da igreja, dar o réquiem a Cirino; mas o tempo não era de generosidade.

No cais o dia mal se alevantara, e agora, o sol miúdo da manhã não dava conta de acalorar a escura sala do sindicato. O corpo, com a ajuda de braços acostumados ao bodum da lama dos rios, foi posto no caixão-de-defunto; sem o forro de pano, a juntura de madeira e os pregos, expostos.

Logo a sala se encheu de camponeses meio que aturdidos. Os relatos, tão apressados, a modo de seguir a velocidade de balas de matracas. Já ouviram, todos, o som do mulungu no festim da Pretinha do Congo; o som do couro percutido, zunindo nos ouvidos, não deixava ninguém dormir em toda vila do Baldo do Rio; ninguém se incomodara, posto que o juízo de cada um, puxando o coração, seguia num tropel igual. Vamo batucá, meu povo! Só um gritando, com os dedos curtidos no couro da mesma espessura de sua pele. Nenhum espanto.

Mas com a matraca descosturando o vento, valei-me minha Pretinha do Congo! O céu não tem tamanho e essas balas vão no rumo da vaguidão… O tecido de chita da Pretinha, tão estampado quanto a brancura dos olhos no pretume do rosto; o batom vermelho nos beiços, as miçangas nos peitos, nas orelhas; a reza e a botica do pai de santo, tudo ficou miúdo quando a matraca estrugiu.

Dera tempo só de despescar a camboa. A velha Josefa, curtida nos anos, nenhum sentimento novo no través das veias, com descrição fria e farta. De seu lado, a mesma criança que, com ela, testemunhara o rasgo da matraca. Num instante a pele escura de Cirino curtiu-se num amarelo de carbureto. A lama do charco sorveu, apressada, o sangue do negro. Vi coisa assim nunca! Nem no pior dos invernos. Naninha, segurando na minha mão, tremelicou os dois olhos enquanto o rolo durou; só abriu pra ver o sangueiro escorrendo.

O resto dos homens danara-se pelas covas do canavial, derribando até caianas de nó grosso. A velha ficara por meia hora estimando o estrago no corpo de Cirino. Naninha, que dera uma trégua à mão calosa da velha, escondera o rosto e as mãos na saia da avó.

A enfiada de jundiás, de jundiás e traíras, jazia atrás de uma jarra de barro fria, de fundo gelado, na cozinha do sindicato; podiam conservar-se na frieza do canto da parede. Não dera tempo de tratar os peixes. Cirino, que também fizera menção de escapar, assim que ouvira os gritos de ameaça do banguezeiro, pisou no charco, sem dar tempo de alevantar a perna direita e pôr-se a correr com os outros; teve tempo de olhar para o rio, mais perto que a picada do outro lado das canas.

O carcereiro Bia entrou no sindicato, aproveitando-se da prosa miúda àquela altura.

Quem estava mais com ele? – quis saber da velha Josefa.

Depois dos tiros, o tempo fechou e eu só vi a encomenda.

O caixão, carregado por quatro homens, abriu caminho entre os dois. A velha puxou Naninha pela mão e seguiu o cortejo.

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