“Casanegra”

Marroquino Nur-Edine Lakmari desmistifica Casablanca, mostrando o que restou dela em filme que mescla romance, comédia e drama social

         Na mística Casablanca de Michael Curtis, a cidade é refúgio de espertalhões, corruptos, amantes frustrados e heróis da resistência francesa, durante a II Guerra Mundial. Pouco se vê da cidade real. A ação se passa no Rick Bar, onde os ex-amantes Rick (Humphrey Bogart) e Ilsa (Ingrid Bergman) se reencontram. Nada resta desse mito em “Casanegra”, do marroquino Nur-Edine Lakmari. Há, pelo contrário, total desmistificação dessa emblemática obra dos tempos áureos de Hollywood. O que interessa a Lakmari é mostrar que os tempos são outros.

       Nada é glorioso em “Casanegra”. Seus personagens se movem em ruas sujas, povoadas de sem tetos, agiotas, exploradores de menores e empresários inescrupulosos. Os decadentes prédios, onde mora a baixa classe média, escondem frustrações, maltrato de mulheres, desempregados crônicos e sofrimento de idosos. Esta é a área chamada pelos jovens Adil (Anas Elbaz) e Karim (Omar Lofti), de Casanegra, Casablanca, para eles, é a área habitada pela burguesia marroquina, cheia de prédios de alto luxo, lojas de grifes, boates, mulheres deslumbrantes.

     Esta demarcação de classes, feita de maneira aberta por Lakmari, é o que condiciona os personagens a seus espaços. Eles não transitam entre a Casanegra e a Casablanca como em filmes e novelas atuais. Quando o fazem é porque usam de expedientes. Os jovens Adil e Karim não são marginais por simples escolha, são produtos da Casanegra, de famílias destroçadas, que conservam certa ingenuidade. Mas não são inocentes. Karim usa garotos para vender cigarros traficados na rua; Adil vive de pequenos furtos.

     Eles não são heróis. Mesmo quando Adil ajuda o vizinho deficiente, mostra apenas que isso é de sua natureza. Também Karim é capaz de brincar com os garotos que explora. O espectador pode não perdoá-los, mas se identifica com seus dilemas. Adil assiste há todo momento o padrasto espancar a mãe; Karim tenta ajudar a irmã estudar inglês, para imigrar para os EUA, e se comove com o pai, vítima de atrofia nas mãos causada pelo trabalho numa peixaria.

Lakmari foge ao
 maniqueísmo

    Quando saem para as ruas, carregam nas costas estes impasses, que não seus apenas. São da estrutura da sociedade, da monarquia, da realeza, da burguesia marroquina, enfim. Há toda uma cadeia, que começa nas crianças, vendendo cigarro nas ruas, passa por Adil e Karim e chega ao agiota Zrirek (Mohamed Benbrahim), o melhor personagem do filme. É rico em nuances, multifacetado, passeia do ameaçador ao histriônico, da brutalidade com furadora nas mãos ao entoar de canções árabes, em sua boate. Difícil deixar o cinema sem lembrar-se do refrão: “Meu nome é Zrirek”, cantado por ele num inglês debochado, “de quem está de bem com a vida”.

    Esta mescla de drama e comédia pontua “Casanegra” com o romance de Karim e Nabila (Ghita Tazi), a burguesa dona de loja de grife. Lakmari não usa a relação deles para unir classes sociais diferentes, como nos contos de fadas atuais, sim para mostrar seus desencontros. E desmonta-a numa sequência cheia de humor, sem frustração ou psicologismos. E logo volta ao drama policial, ao mundo deles, Adil e Karim. Perdidos, eles são atraídos por Srirek para uma ação que rende a melhor sequência do filme.

    É surreal vê-los assistir seu plano desmontar e seu objeto de cobiça fugir sem que possam fazer coisa alguma. Faz rir e deixa, a um só tempo, o espectador estupefato. Adil e Karim são aves de rapina de vôo curto. Só funcionam quando a ação exige brutalidade. É o que fazem quando Karim dá uma surra no cabeleireiro que deve ao agiota Zrirek, e Adil, finalmente, livra a mãe do padrasto. Lakmari tem aqui seu instante de ativista, ao condenar o padrasto ao abandono, mas desliza na brutalização do cabeleireiro gay. É pura homofobia.

      Esta mescla de policial, romance, comédia e drama social não torna “Casanegra” um filme disperso. Os entrechos se encaixam, sem que a história perca o sentido. Os personagens vão de uma ação à outra num ágil encadeado. Há nítida influência do Fernando Meirelles de “Cidade de Deus”, com a câmera e personagens girando, num ritmo alucinante. E má leitura do James Cameron de “Titanic”, pelo uso constante dos personagens gritando de braços abertos para a Casablanca que os repele. É um recurso dramatúrgico e de encenação que virou um clichê.

      É, ainda assim, um filme a ser descoberto, pelo que representa de leitura não eurocêntrica da vida na Casablanca desmistificada. Integrou a Mostra de Cinema Árabe, realizada pela UNA, de 09 a 16 de julho, em Belo Horizonte. Lakmari (“Le Regard”/“O Olhar”) é cineasta premiado, formando pela Academia de Cinema de Oslo, Noruega. Seu “Casanegra” não é uma obra-prima, mas não desperdiça o tempo do espectador.

Casanegra”. (“Casanegra”). Drama. Marrocos. 208. 110 minutos. Fotografia: Luca Coassin. Música: Richard Horowitz. Roteiro/direção: Nur-Edine Lakmari. Elenco:Anas Elbaz,Omar Lotfi, Mohamed Benbrahim, Ghita Tazi, Driss Roukhe.

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