“Outra Vez”: Para além do front

A guerra civil libanesa e seus reflexos na Síria são o tema do filme de estréia do jovem diretor sírio Joud Said

       De seu QG no alto de uma montanha no Líbano o general sírio Abu Majd (Jonny Komovic), em “Outra Vez”, filme de estréia do sírio Joud Said, orienta seus oficiais durante a guerra civil libanesa (1985/1991). Não se vê movimentos de soldados, tanques, confrontos. Percebe-se apenas o desgaste imposto pelo conflito em que intervieram Síria e Irã, em contraposição a Israel, sempre apoiado pelos EUA. Consequência da “Guerra dos Seis Dias” (5 a 10/06/1967), quando as tropas israelenses ocuparam as Colinas de Golan (Síria) e o Monte Sinai (Egito), mais Cisjordânia e Jerusalém, cujos efeitos estão longe de desaparecer.

      A guerra, no entanto, não é o centro deste tenso e enxuto drama, dirigido com eficiência por Joud, formado pela Universidade Louis Lumière, França – é tão só o pano de fundo sobre os danos causados por um confronto ainda sem solução. À Joud não interessa a batalha, mas seus efeitos sobre as pessoas comuns e, inclusive, os oficiais e soldados cujas vidas são postas em jogo a cada segundo. Estes vivem em situação-limite, a ponto de Abu Majd às vezes perder o sentido da realidade, como ocorre na maioria das vezes nos fronts.

      Ele não vê sentido no que está fazendo, porém não o externa a seus oficiais. Apenas um deles, o major Abu Said (Abdulatif Abdulhamid) o percebe, sem o questionar diretamente. Joud, assim, não os dota do esforço sobre-humano a que o espectador acostumou a ver em tantos filmes de guerra, não só os hollywoodianos. Quem está em cena é um ser humano submetido à tensão psicológica para tornar realidade as imposições político-ideológicas das camadas dirigentes. Mesmo que não esteja no campo de batalha, sabe dos efeitos de suas ordens e do poder mortífero de suas armas. Isto leva à corrosão de sua estrutura mental e física.

     É costume mostrar, na tela, oficiais destemidos, frios, dispostos a destroçar o inimigo sem psicologismos ou reflexões humanistas. Só a rendição ou a morte do inimigo lhes interessam. Com Abu Majd vê-se outra coisa. Está duplamente sobrecarregado. É obrigado a se dividir entre o front e os cuidados do filho Majd (Qays Cheikh). E não consegue livrar-se de nenhum deles. Mesmo quando não está no front, sente a chamada “nostalgia do combate” e preocupa-se com o filho. E ainda que não esteja em cena, continua ditando os rumos da narrativa. O que só o humaniza.

Guerra destrói
ambos os povos

       Mas “Outra Vez” é, sobretudo, um filme sobre culpa, responsabilidade e as dependências duradouras criadas pela guerra. Abu Majd por força das batalhas entrega o filho aos cuidados do major Abu Said, que não entende o risco que isto envolve. Então, a guerra, aparentemente o tema principal, torna-se o pano de fundo para a relação que se desenvolverá entre Abu Said e o Majd. É como se o major quisesse se redimir, sem analisar as causas que o induziram ao erro. A guerra despertou no garoto Majd, desde cedo, o fetiche pela arma pesada, porquanto este é o meio em que vive. O que lhe acontece tem culpados invisíveis. Os responsáveis por sua curiosidade estão nos gabinetes de Tel Aviv e de Washington, e a culpa não deve recair sobre Abu Said.

       É tal o temor de fracasso que Abu Said irá controlar Majd em sua vida   profissional e particular. Assume o papel de tutor, pai e segurança. A voz de Abu Majd e o passado o agarraram de tal modo, que Majd não lhe escapa nem quando se divide entre a mulher Kinda (Kinda Allouch) e a amante libanesa Joyce Newfil (Pierrete Katrib). Esta se divide entre a Síria e o Líbano, levando-o a se preocupar agora não com um problema, mas com vários. Joud, nesta última parte do filme, trata dos efeitos da guerra sobre a vida das pessoas comuns e da elite, que se vê, de repente, fragilizada. Majd e Joyce querem viver juntos, no entanto o confronto bélico os impede.

     Com esta trama e subtramas bem demarcadas, Joud trata de tema atual para o equilíbrio político-ideológico no Oriente Médio. É como se ele dissesse: o conflito árabe-israelense corrói estruturas familiares, amorosas e econômicas, e impede o futuro dos respectivos povos. Ninguém tem tranquilidade para tocar a vida diante dos atropelos do belicismo e dos interesses político-religiosos israelenses, cuja intervenção na guerra civil libanesa ficou marcada pelo “massacre de Sabha e Chatila”. E influencia até hoje os rumos políticos do Líbano e atualmente da Síria, em franca desestabilização, por mais que precise de reformas, que não as ditadas por Israel e EUA, que temem perder a influência no Oriente Médio.   

     “Outra Vez” ajuda o espectador refletir sobre o conflito árabe-israelense, presente em seu cotidiano através de fortes imagens na mídia. Foi um dos nove filmes da Mostra de Cinema Árabe, realizada pelo Instituto Cultural UNA de 9 a 16 de julho, em Belo Horizonte, com a exibição de produções do Egito, Argélia, Emirados Árabes, Marrocos, Palestina, Síria e Tunísia. Tem rigor formal e uma narrativa sem maniqueísmo. Igualmente importante é “Casanegra”, do marroquino Nour-Eddine Lahmari, que a coluna irá veicular na próxima semana.

Outra Vez”. (“Marra Oukhra”). Drama. Síria. 2009. 96 minutos. Fotografia: Joud Gorani. Música: Nadim Mishlawi. Roteiro/direção: Joud Said. Elenco: Qays Cheikh Najib, Abdulatif Addulhamid, Pierrete Katrib, Kinda Allouch, Jonny Komovic.

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