“Cópia Fiel”: Ocaso do Homem

O papel que as cópias das obras de arte assumiram na sociedade de consumo e a perda de referência do homem são os temas do filme do diretor iraniano Abbas Kiarostami

       A simplicidade com que o diretor iraniano Abbas Kiarostami muda o rumo narrativo em “Cópia Fiel” atesta, mais uma vez, sua capacidade de enredar o homem, e neste caso é o homem mesmo, em teias das quais não consegue ou não quer se livrar. Seja por costume ou por imposição de um sistema que se faz invisível. O sistema aqui é a estrutura social que interfere nas relações entre o filosofo inglês James Miller (William Shimell) e a galerista francesa Elle (Juliette Binoche). Eles passam a reproduzir padrões como se não conseguissem mudar os papéis que essa estrutura lhes atribuiu.

       Mas Kiarostami vai ao longo do filme desmontando suas próprias premissas através de contraposições sempre visíveis. Seja pondo personagens secundários, quase figurantes, para fazê-lo, seja criando situações para justificar sua contraposição. No entanto, a história é bem simples: James Miller vai ao interior da Toscana lançar seu livro “Cópia Fiel”, que trata da reprodução indiscriminada das obras de arte. Durante sua palestra, discute a importância que elas adquiriram na sociedade de consumo. Sua proliferação faz o original deixar de ser raridade, pois se torna objeto de consumo de massa, como é característico do Movimento Pop Art.

      Seus parâmetros são o artista plástico estadunidense Jasper Johns (1930), mas poderia ser Andy Wahrol (1929/1987), com serigrafias que reproduzem rótulo da Sopa Campbell e fotos de Marilyn Monroe, Elizabeth Taylor, Mao e Pelé. Qualquer cidadão pode adquirir uma reprodução de suas criações, sem ser colecionador ou especulador das casas de leilões, e se inserir no grupo de possuidores de uma obra sua. Ou até mesmo, fora da art pop, comprar uma reprodução dos “Campos de Trigo” de Van Gogh (1853/1890) ou “Abaporu”, de Tarsila do Amaral (1886/1973), por simplesmente gostar delas.

       A visão de Miller é elitista, pois defende mais o investimento do que a contribuição do artista à cultura. A obra de arte deve circular pelo mundo como espelho da cultura a que pertence. Desta forma, o público entra em contato com ela e dela tirar lições. Na visão elitista, a obra de arte pertence ao colecionador que, no máximo, cede seu patrimônio ao museu para visitação pública, enquanto o especulador a tranca a sete chaves para deleite de seu seleto grupo, se tanto. A reprodução em série quebra o caráter apenas mercadológico do original (matriz) e democratiza o acesso à obra de arte.

Dualidade cópia/
original é superflua

      Miller, tão voltado para si, encontra em Elle sua contraposição. Ela o leva a uma cidadezinha da Toscana onde, devagar, desmonta suas certezas. O faz ao apresentar-lhe uma tela cuja cópia é mais admirada que o original. Sequência que rende boa discussão sobre sua autoria. Esta já não importa, a tela se tornou pública, de domínio e admiração do povo. Sua propriedade é agora coletiva, não de marchand, colecionador ou especulador. Elle então traz Miller para o mundo real, onde essa discussão é insuficiente, para não dizer supérflua, por esconder o elitismo dele e não revelar a contradição entre posse e acesso. E o põe em contrato com os costumes locais, que mantêm vivos a memória coletiva, por meio dos casamentos realizados na igreja local.

       A máscara de Miller começa a mudar sem que ele perceba. A dualidade cópia/original perde sentido. Kiarostami a transforma na representação de papéis assumidos pelos casais na relação a dois, com o acréscimo do que dela nasce. Mais do que saber quem está com a razão, aqui vale quem assume seu papel, não quem foge dele. A sequência na cantina, quando Elle trava significativo diálogo com a cantineira, bem o demonstra. Os papéis às vezes se invertem. O que está à vista não é o real, mas uma representação dele. Miller e Elle passam a representar o jogo de casais que vivem na repetição, sem que o homem assuma a sua parte.

      O filme põe fim à discussão sobre arte, para entrar no universo da relação a dois e da família. E desmonta de vez o castelo elitista de Miller e, por extensão, do próprio homem neste terceiro milênio. Ele continua entregue apenas ao trabalho, a sua maneira de ver-se na sociedade, enquanto perde o sentido do prazer, da emoção, da paixão. Kiarostami parece ler lido Jung (Carl Gustav), que diz em “Tipos Psicológicos”, que a mulher é mais dada à introspecção, ao sentimento, enquanto o homem se entrega a extroversão, à ação. Mas Jung (1875/1961) não viveu a liberação feminina, para ver sua mutação social.

    O papel da mulher mudou significativamente, Elle na discussão com Miller o prova. Está superando as amarras ainda presentes e assumindo novos desafios. Miller, no entanto, é o Johnny Marco, de Sofia Coppola, em “Um Lugar Qualquer”, na meia idade. A presença da filha faz Marco entender seu papel e suas falhas. Miller, em sua nova representação, nem chega perto disso. É resultado da perda do papel que o capitalismo e a Igreja Católica atribuíram ao homem e ele insiste em mantê-lo. Dá para sentir a crise.

Cópia Fiel” (“Copie Conforme”). Drama. França/Itália/Irã. 2010. 106 minutos. Roteiro; Abbas Kiarostami, com as contribuições de Caroline Eliacheff e Maussomeh Lahidji. Direção: Abbas Kiarostami. Fotografia: Luca Bigazi. Elenco: Juliette Binoche, William Shimel, Adrian Moore.
(*) Juliette Binoche, prêmio Melhor Atriz Festival de Cannes 2010.

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