“Potiche: Esposa Troféu”: Comédia de Enganos

Feminismo usado de escada para alcançar o poder político burguês e o machismo são os temas desta comédia do diretor francês François Ozon

        No desfecho de “Potiche: Esposa Troféu”, do francês François Ozon, o espectador fica com a impressão de que terminou de assistir a um filme feminista. Portanto, moderno, ousado, até. Mas basta refletir sobre o que acabou de ver para duvidar de sua conclusão. Ozon, acostumado a dramas existenciais (“Sob a Areia”), embalou sua comédia num jogo de enganos e reviravoltas, típico das comédias hollywoodianas dos anos 40, para reafirmar a capacidade da burguesia de si reinventar em meio a qualquer tipo de crise.

      Esta é, na verdade, a ideia central de seu filme. Em 1977, Suzanne Pujol (Catherine Deneuve), esposa fiel do industrial Robert (Fabrice Luchini), passa seus dias entre a caminhada e a ociosidade. Um dia o marido adoece, e ela se vê à frente dos negócios da família. A partir daí, sua vida se transforma. Mostra-se competente na gestão da empresa, recebe elogios dos operários, do deputado e prefeito comunista Maurice Babin (Gerard Depardieu) e provoca a ira e o ciúme de Robert. Até as relações conflituosas dele com o sindicato e Babin entram em nova fase.

      Não bastasse isto, os filhos Joelle (Judith Godréche) e Laurent (Jérémie Renier), antes afastados devido a conflitos com o pai, retornam. Tudo se encaixa, portanto, ainda mais numa comédia onde o riso fica por conta do autoritário, reacionário e mulherengo Robert. Capaz de dizer à mulher que renovou a empresa herdada do sogro, quando seus métodos de gestão não se traduzem em qualidade, nem conquista novos nichos de mercado. E usa e abusa da secretaria Nadége (Karen Viard), retrato da classe média subserviente que tudo faz para manter o emprego.

      O que Suzanne prova é que a fábrica precisava de uma lufada de modernização. Ela o faz em tom de surpresa com o que ocorre ao seu redor, como se não provocasse tudo aquilo. É criativa e abre espaço para empregados, filhos e o próprio Babin. Diferente do marido concentrador e mandão, que sem nada para fazer, depois de sua ascensão, reage aos berros, incomodado com a ociosidade e a perda de status, e faz tudo para sabotá-la.

Ozon disfarça
suas intenções

       Estes entrechos servem para o filme ficar entre a comédia de ideias e a de situações. Ozon, com base na peça de Bari Llet e Gredy, usa o comentário musical para amenizar a rigidez do tema. Substitui os diálogos que opõem Suzanne a Babin por canções, atenuando a luta de classes e a disputa amorosa entre eles. Em plena ação dramática, ela pode, de repente, introduzir uma canção que se transforma numa projeção do que virá com sua ascensão ao poder político. Dá leveza ao filme, torna a sequência encantatória, disfarça intenções e conteúdo, e a um só tempo Ozon homenageia os musicais hollywoodianos e os do francês Jacques Demy (“Os Guarda-chuvas do Amor”). Quase faz esquecer seus verdadeiros propósitos, quando tudo não passa de um jogo de espelhos.

       Mas ele esvazia o eixo central do filme ao acrescentar entrechos como as reminiscências amorosas de Suzanne e sua conflituosa relação com Babin. A narrativa perde o tom farsesco, assume contornos dramáticos, virando uma paródia da juventude perdida, em plena época da discoteca. Ainda que a sequência de Suzanne e Babin na discoteca descambe para a autogozação, dado ao peso da idade de ambos. Acabam provocando melancólicos risos, pelo que simbolizam os personagens e os próprios atores. Se lhes resta a verve, a visão madura, o tempo soterrou qualquer ilusão amorosa entre eles.

       Este interregno amoroso, entre lágrimas e frustrações, serve para Ozon tratar do machismo que a seu ver equipara o comunista Babin e ao burguês Robert. Ambos não têm o menor apreço pelos esforços de Suzanne. Babin perde o senso da luta de classe, torna-se romântico e, de repente, é tomado de rancor. O que passa a movê-lo não é a causa proletária, mas a paixão frustrada pura e simples. Ozon o transforma, assim, num choroso líder político-sindical. Igual ao que virou Robert, cheio de inveja do sucesso de Suzanne e da independência recém-conquistada por ela.

       Pode haver verdade nesta visão, mas ela esconde a linha seguida por Ozon desde o início: a de confirmar a capacidade do burguês de unir o controle dos meios de produção ao do poder político. Suzanne é o “símbolo da luta de emancipação das mulheres”, não uma proletária, mas uma burguesa que à menor manobra pode alçar-se à liderança de sua empresa. Mas o feminismo de Llet, Gredy e Ozon não é emancipacionista, do ponto de vista político-ideológico, socialista, é puramente burguês, capitalista. Uma vez que Robert retoma o cetro, dando a Suzanne a chance de superar-se, o que ela faz com sucesso.

      Ao fazê-lo, ela une a família, por uma artimanha da filha Joelle, e alcança o poder político, deixando os Pujol no controle total da pequena Saint-Gudelle. Seu liberalismo pode ser visto como uma artimanha de quem tomou gosto pela disputa política e o usa no interesse de sua classe. Dá para perceber o direitismo de Ozon. Para ele, a burguesia sempre vence. Ainda não sentiu os ecos do Palácio de Inverno.

Potiche: Esposa Troféu” (“Potiche”). Comédia. França. 2010. 103 minutos. Roteiro: Françolis Ozon, baseado na peça de Bari Llet e Gredy. Direção: François Ozon. Elenco: Catherine Deneuve, Gerard Depardieu, Fabrice Luchini, Karin Viard, Judith Godriche, Jérémie Renier.

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