A melhor música da história

Na semana passada, os ingleses cometeram mais uma. Acharam de escolher os 20 maiores cantores de todos os tempos. A topada se deu em lista dos leitores do New Musical Express. Entre os máximos, Michael Jackson, Freddie Mercury, Elvis Presley, Axl Rose, John Lennon, David Bowie, nessa ordem, até atingir Tina Turner. Ray Charles apareceu em décimo primeiro lugar, talvez por excesso de generosidade. Mas o pior aconteceu com aquele monstro que o mundo inteiro chama de Nat King Cole. Ele vai ter que esperar os 20 maiores cantores de todos os tempos em algum futuro longe da ilha.

Não faz muito, os súditos da Rainha gritaram para os súditos de todo o planeta:

LEITORES DO THE SUN ELEGEM BOHEMIAN RHAPSODY A MELHOR MÚSICA DA HISTÓRIA.

REVISTA Q ELEGE ONE, DO U2, A MELHOR MÚSICA JÁ GRAVADA.

Na ocasião, como agora, o que saltou aos olhos foi a leviandade. A imprensa inglesa elegia o melhor, o maior e o mais com a superficialidade e leveza com que escolhe a melhor entre duas marcas de cerveja num pub. E esta segunda coisa saltou também, um pouco depois: como é que se elege a melhor música da história na base de uma simples coleta de opiniões na esquina? Ainda que essa esquina se ache a melhor e maior e a mais do mundo, como pode tal eleita possuir algum valor, digamos, estético?

Com agravantes. A eleição na revista Q se fez entre escritores e uma equipe de músicos profissionais, que destacaram a One, do U2, dentre as 1001 melhores músicas já gravadas. Por que 1001, e não simplesmente 100, ou 1000, esqueçam. Todos sabemos que a ignorância não tem dúvidas. A ignorância só possui certezas. Mas parece que tal eleição é mais funda que uma ação ignorante – ela atinge um núcleo mais substancioso, pois vive e ondula no cerne de um bem robusto e assentado preconceito. Porque vejam, leiam, meditem: dizer que tal música, inglesa, ou aquela, inglesa, sem dúvida, é a melhor da história ou das já gravadas, não é outra coisa se não dizer que: a) os outros povos não têm música; b) outros povos até que têm, mas nada que se compare à canção inglesa.

É palmar, é tedioso dizer que todos os povos têm um gênio de ser, um modo de estar e agir no mundo que é o seu destino e caráter. E tão universais atingem a natureza que deixam de ser particulares, que deixam de ser a sua nacionalidade contra a de outros. Em vez de versus abraçam. Em vez de se oporem a nós, conquistam-nos pela qualidade de possuírem os nossos melhores talentos. Que importa mesmo que Cervantes seja espanhol, Shakespeare inglês, Goethe alemão, Tolstoi russo, Baudelaire francês, Pixinguinha brasileiro?

Mas nada disso ficará claro, nenhum argumento restará em pé se não contarmos dois pequeninos casos sobre a arrogância colonial de alguns ingleses. No primeiro que me acode à memória, um estudante brasileiro fazia o doutorado em Londres. O que já é, em si, uma dupla manifestação de espírito e mentalidade colonialista. Tanto de quem vai buscar reconhecimento quanto de quem concede. O fato é que um belo dia, em estado de inocência, o estudante brasileiro perguntou a seu orientador se ele conhecia outro idioma. Resposta: – “Eu não preciso. Todo o mundo fala a minha língua”. Isso é ou não é exemplar, um modelo de bendita ignorância, preconceito e autossatisfação?

Em outra, o autor destas mal traçadas conversava com uma jornalista inglesa. A certa altura do Alto da Sé, em Olinda, comentou que era inútil lamentar o que estava perdido, pois que “não adiantava chorar o leite derramado”. Ao que lhe observou a jornalista: – “Existe isto aqui, esse ‘não adianta chorar o leite derramado’? Incrível. Pois isto é a tradução literal de um ditado inglês”. Mais tarde, anos depois, ao saber dessa observação, assim comentou um espanhol, ilustre editor do site La Insígnia:

– Vai ver que esse ditado é latino em sua origem. Os ingleses sempre acham que a sua tradução é a origem do mundo.

No que volto a ser brasileiro. Tiro o som de U2, sem pesar esqueço a Bohemian Rhapsody, e ponho em seu merecido lugar Pixinguinha. Dou-lhe um descanso e vou para o genial choro 1 x 0, ele no sax e Benedito Lacerda na flauta. Depois ouço Copacabana, levado pela voz do senhor Dick Farney: “existem praias tão lindas cheias de luz, nenhuma tem o encanto que tu possuis…”. E sem álcool, sem ufanismo me digo: Copacabana continuará pelos séculos a ondular pelas esferas no infinito. Até mesmo quando a burrice e pretensão não forem nem lembrança.

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