Meu camarada Dinho: honraremos a sua luta

Eram 11 horas da manhã de sexta feira do dia 27 de maio de 2011 quando o meu celular tocou. Do outro lado da linha uma voz embargada por um misto de dor, ódio e medo me dava a trágica notícia num sopro: “o Dinho acaba de ser assassinado com 5 tiros”. Como, onde?, perguntei inutilmente talvez na vã esperança de que aquilo não passasse de um pesadelo. Lamentavelmente não era. Do outro da linha, de Boca do Acre (AM) estava o extensionista Cárceres que, assim como eu, era amigo do Dinho e que havia me acompanhado até o assentamento florestal liderado por ele há pouco mais de duas semanas.

O Cárceres era o chefe do escritório do IDAM (órgão de extensão da SEPROR – Secretaria de Estado da Produção Rural do Amazonas) no sul de Lábrea, onde fica o assentamento florestal em questão. Foi retirado da área há menos de duas semanas porque concluímos que as sucessivas ameaças de morte que estava sofrendo poderiam se converter em tragédia. A prudência lhe poupou a vida, o que lamentavelmente não foi possível no caso do nosso camarada Adelino Ramos, popularmente conhecido como Dinho, que deixa mulher, filhos e filhas (crianças de 3 e 6 anos de seu 2º casamento).

Dinho foi executado covardemente quando saiu do assentamento no sul de Lábrea (AM) e foi vender hortaliças – fruto de seu trabalho – na vila Vista Alegre do Abunã (RO), onde residem aproximadamente 4 mil pessoas. A vila fica às margens da BR 364, depois de Nova Califórnia e Extrema (Distritos de Porto Velho), no sentido Rio Branco (AC) – Porto Velho (RO). A região é por natureza tensa em decorrência de grilagem de terra, contrabando de madeira e mesmo de drogas. Tal situação se agrava pela ausência absoluta do poder público.

Para se ter uma ideia dessa “terra sem lei” Dinho foi executado no meio da rua. O pistoleiro chegou até ele andando e saiu andando, atirando para o alto numa clara demonstração de arrogância e de intimidação às mais de 20 pessoas que presenciaram a bestialidade. Depois voltou, acintosamente, para certificar-se de que havia executado a vítima. Não encontrando mais o corpo passou a rondar a casa onde a sua esposa e as duas filhas crianças haviam se refugiado. A providência de um dos dois policiais presentes à vila foi pegar um carro e levar a viúva para outro vilarejo, o que pareceria pitoresco se não fosse trágico. Mas não acaba aí. Numa vila de mais de 4 mil pessoas não havia um único médico ou ambulância que pudesse providenciar algum socorro. Um automóvel improvisado foi tudo o que restou para tentar chegar a Rio Branco, a 230 km. Na altura de Extrema, ainda há mais de 180 km de alguma esperança, Dinho, sangrando copiosamente, não resistiu e veio a óbito. É difícil dizer se o socorro médico poderia ter lhe salvado a vida, após 5 tiros disparados à “queima roupa”, mas certamente não ficaríamos com essa dúvida.

Por que Dinho morreu? Morreu lutando por uma causa. Mais do que por terra e trabalho Dinho morreu lutando para organizar os trabalhadores rurais, tarefa a qual se dava com extremada dedicação e com absoluta noção do risco que corria. Escapou do massacre de Corumbiara, onde 13 militantes do movimento foram assassinados e a partir de então organizou o MCC (Movimento Camponês Corumbiara) e posteriormente a Associação dos Trabalhadores do Sul de Lábrea, onde se encontrava, para executar um PAF (Projeto de Assentamento Florestal), cuja burocracia ambiental e fundiária lhe impediu de ver o assentamento em pleno funcionamento.

Na última vez que conversamos, no meio da selva, estava cheio de esperanças e sonhos. Mostrava a produção florescente de hortaliças e grãos que desenvolvia com o apoio de nossa Secretaria; se orgulhava do barracão tosco que havia construído para assegurar que as crianças tivessem aula; esperava com ansiedade a licença do INCRA para a instalação definitiva do PAF e já entabulava negociações para a venda da madeira legalizada que iriam produzir. Lutava para ordenar e legalizar a atividade econômica florestal sustentável, tudo o que não interessa a essa horda de grileiros florestais e, por paradoxal que possa parecer, aos santuaristas que se levantam contra todo e qualquer uso de nossos recursos naturais. Os grileiros produtivistas porque veem em qualquer ordenamento legal uma “restrição indevida” ao furor predatório capitalista, como já denunciava Marx; e os santuaristas porque veem na legalização o instrumento do qual as pessoas de bem podem lançar mão para desenvolver atividades econômicas sustentáveis – como o Dinho estava fazendo – o que fragiliza a tática do bloqueio da Amazônia, que até então eles tem aplicado, em consonância com a teoria neomalthusiana de restringir os recursos naturais aos ricos.

Era um revolucionário na melhor acepção da palavra. Organizava cursos e palestras regulares aos membros do movimento. Cobrava por formação e cultivava a disciplina militante. Era irrequieto e teimoso, como todos os que querem fazer e não se contentam com a mera contemplação ou com os diagnósticos acadêmicos. Buscou o PCdoB, pois, segundo sempre me dizia, tinha encontrado eco à sua luta, se identificava com as bandeiras do partido, em especial a dedicação aos trabalhadores. Sonhava e lutava para transformar seus sonhos em realidade. Temos obrigação de não permitir que o projeto fracasse ou pare, pois isso é precisamente o que querem os facínoras.

Essa bela trajetória de sonhos e lutas foi tragicamente interrompida por uma besta assassina, já identificada pelo nome de Ozias Vicente “Machado”, que nós tudo faremos para que seja exemplarmente punido. A noção precisa de que a sociedade se move, se orienta pela luta de classes, faz com que sejamos obrigados a seguir em frente procurando honrar a trajetória de todos que tombaram pela causa da liberdade e do socialismo, como os guerrilheiros do Araguaia, Paulo Fonteles, a família Canuto e agora o camarada Dinho, dentre tantos outros.

Mas fica sempre a pergunta incômoda em forma de protesto: quantos de nós terão ainda que regar com o seu sangue generoso a semente da justiça social que teima em não germinar, e muito menos florescer, nesses rincões amazônicos, onde seus filhos estão abandonados à própria sorte, o que nos faz lembrar de Euclides da Cunha quando, há 100 anos atrás, em A margem da história, identificava tais rincões com o renascimento de um feudalismo bronco.

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