“Filme Socialismo”: Navio à deriva

Diretor francês Jean-Luc Godard, 80 anos, se reinventa em filme que trata da alienação burguesa e dos impasses para as mudanças ideológicas

                Nada mais Godard do que uma obra com o instigante título de “Filme Socialismo”, no qual nenhuma menção se faz a ele e tampouco o proletariado se faz presente. Mas as contradições que engendram a ambos, sim. Durante 101 minutos, o espectador fica diante de desafiadoras imagens de um luxuoso navio lotado de burgueses num cruzeiro pelo Mediterrâneo. Em “E La Nave Va”, Fellini mostra a derradeira viagem da decadente nobreza européia, que desemboca na I Guerra Mundial. No cruzeiro godardiano, eles podem estar produzindo a própria derrocada, defrontando-se com a Bastilha ou o Palácio do Inverno. E então buscar lições na história será tarde demais.

                Godard mostra-os como passageiros indiferenciados, que desfrutam dos prazeres oferecidos pelo luxuoso navio. Deles destaca o grupo formado por passageiros de diversos países, idades e posições que discutirá os mais variados temas durante o cruzeiro. Não são personagens de uma história, no sentido tradicional, aristotélico, com princípio meio e fim, motivações, reações, busca de objetivos. Isso em “Filme Socialismo” não tem a mínima importância. O que vale aqui são as questões levantadas e a forma como Godard as apresenta.

                Cada sequência remete a uma polêmica: “os judeus inventaram Hollywood”, “a marginalização dos palestinos se consolidou com a criação de Israel”. Referências que lhe valeram não poucas dores de cabeça. Sem discurso, usa a dialética da revolução socialista, centrada na palavra-código Odessa, imortalizada por Sergei Eisenstein na sequência do massacre de operários na famosa escadaria, em “Encouraçado Potemkin”. Instante de utopia, consignado na Revolução Russa. E o navio lotado de burgueses, metáfora da “era do alheamento”, emerge com toques da Revolução Francesa. Enquanto a nobreza banqueteava, o proletariado e a burguesia, então revolucionária, se insurgiam.

               Não é diferente nestes tempos de revoluções no norte da África e no Oriente Médio. A grande mídia, porta-voz dos interesses dos EUA e da União Européia, tenta retirar delas qualquer traço ideológico, de luta de classes, de resistência ao imperialismo. Centra a discussão na tese furada de Samuel P. Huntington, em “O Choque de Civilizações”, de existe hoje um confronto entre o Ocidente Cristão e o Oriente Muçulmano. E com isto, afastar dos trabalhadores a possibilidade de mudanças radicais, não só contra as monarquias, ditaduras militares disfarçadas, teocracias, mas também contra as “democracias capitalistas”, principalmente as do Primeiro Mundo, também chafurdadas no desemprego, na queda do poder aquisitivo dos trabalhadores, na perseguição aos sindicatos (vide o Estado de Wisconsin, nos EUA) e aos imigrantes, na falta de moradia e assistência à saúde e à educação para, também, a classe média.

Godard se reinventa
com novas técnicas
Godard, com seu filme, termina por incentivar estes paralelos e, por que não, cair em contradições. Nas entrelinhas aventa o sombrio momento vivido pelo movimento socialista. E a isto contrapõe a metáfora do navio à deriva, da burguesia hedonista, alheia às condições sociais dos trabalhadores dos mais diversos segmentos à sua volta. E faz da história, através de poderosas imagens, uma presença constante nas discussões levantadas pelo citado grupo. A contraditá-lo estão os movimentos revolucionários árabes e norte-africanos, ainda que não se saiba seus rumos político-ideológicos. A Ideologia, presente mesmo que o capital globalizado não queira, pode se materializar no Socialismo, superando as experiências da ex-URSS e do Leste Europeu.

           No entanto, “Filme Socialismo” não é uma obra de fácil assimilação. Godard retira dela qualquer traço narrativo, de identificação com “personagens”, trama, narrativa, diálogo. Usa para isto os mais variados recursos: documentário, colagem, edição televisiva, instalação, fortes cores, câmera na mão, intertítulo recorrente ao cinema mudo. E os “personagens” não dialogam entre si, falam para a câmera ou soltam frases que mais parecem charadas. E o espectador, atento, tem de completá-las. Pode de repente ouvir: é preciso suprimir o verbo ser. Mas também eliminar artigos, adjetivos, pronomes, como a juventude na internet. Sintomático disto é o “diálogo” entre os dois gatos na TV. A garota que os assiste termina por imitá-los. Ou a conversa da cinegrafista africana com a repórter: usam sinais, murmúrios, gestos.  É uma forma de comunicação para a tribo, quem a ela não pertence fica de fora.  

            Assim, o filme pode ser tedioso, “hermético”, para quem espera algo menos “experimental”, mas Goddard continua a se reinventar e, portanto, ao cinema, neste Terceiro Milênio. Ele, no entanto, não se afastou de sua linha, da busca incessante de novas instrumentos de registro imagens, do 16 mm ao super 8, da câmera de vídeo ao celular. Se vale de diferentes linguagens, como a voz em off, não como narrador, introduzindo novos temas, sem que a música ou os entrechos os enfatizem. E cria um filme instigante e multifacetado, mostrando que ainda é possível encontrar novos caminhos para o cinema.

 “Filme Socialismo”. “Film Socialisme”. Ficção/Documentário. Suiça/ França, 2010. 101 minutos. Roteiro/direção: Jean-Luc Godard. Elenco: Christian Sinninger, Jean-Marc Stelé, Catherine Tanvier, Patti Smith.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor