Sobre lobos e meninos

Uma página precisa ser aberta no contexto do debate acerca da Comissão da Verdade sob pena de mantermos uma visão parcial dos acontecimentos que envolveram nossos anos-de-chumbo, particularmente no Araguaia: o tratamento dado ao soldado brasileiro.

Aqui não falo de Bandeiras ou Moogs, Licíos ou Curiós, todos oficiais que atuaram como bestas-feras contra brasileiros, com violência desmedida contra camponeses e guerrilheiros. Também os mandatários da caserna, em tempos de guerrilha na Amazônia, tratavam o mais modesto e popular de seus elementos, o próprio soldado, com bestialidade.

Acontece que o grosso dos soldados que serviram o Exército para combater as Forças Guerrilheiras do Araguaia fora recrutada na própria região conflagrada.

Muitos deles tateavam o inicio do ciclo da vida adulta. Vinham das currutelas e grotas, muitos moravam em castanhais e mal sabiam escrever o nome, eram filhos das populações tradicionais ou de retirantes. Todos, sem exceção, filhos da tragédia brasileira, alargada pela visão de que os pobres eram um problema para a segurança nacional.

Contra estes meninos ouso dizer que os lobos bem-graduados transformaram-nos em seguras cobaias e promoveram um pérfido laboratório.

Vamos a exemplos: alguém aí sabe o que é o Pau-do-Capitão? O Pau-do-Capitão é a versão recruta zero para a Cadeira-do-Dragão. O tal instrumento de tortura fora largamente utilizado contra os moços sob o sol escaldante da Amazônia matando os sonhos de servir a pátria. Há ex-soldados, confesso, que não sonham há mais de trinta e cinco anos não porque torturaram, mas porque foram torturados.

Um caso diz respeito a um soldado que levava e trazia um preso para a sessão de tortura no 52 BIS em Marabá, em 1974. Durante dez dias os dois iam e vinham silenciosos, jamais trocaram uma palavra ou olhares. Em ambos a dualidade que envolve um vulcão e um funeral. Isto seria corriqueiro em tempos onde o aparelho estatal brasileiro estava vocacionado para a tortura se a questão não envolvesse pai e filho. Por dez dias o filho, soldado, levava e buscava, o pai, tido como subversivo, para as sessões de surra pedagógica. E todos no 52 BIS sabiam disso, todos sem exceção.

Quando ouvi aquele ex-soldado relatar tal história na frente de outros 50 ex-soldados senti todas as dores do mundo, suas crueldades e virtudes. Vejo aquele menino de 19 anos e 45 quilos, fardado, metralhadora em punho caminhando pelo calvário das gigantescas extensões daquele quartel. Penso em seu silêncio apenas rompido pelo passo do coturno e pelo sofrimento engolindo sangue do torturado, também silencioso. E assim iam pai e filho. E nestes mais de 35 anos só trocaram palavras apenas uma única vez, num velório em Belém do Pará.

Todos eles querem falar, deixemo-nos, pois

O fato é que aquele menino de 19 anos de 1974 quer falar e sua virtude, sua generosidade, é querer educar toda uma geração de outros meninos e isso será determinante para a felicidade espiritual do povo brasileiro. É por isso que a causa humana é inexorável tal qual a primavera do poeta comunista Pablo Neruda.

Passaram suas vidas com os lobos rondando seus telhados, humanidades e consciências. Um deles sente, por todos os malditos dias, o sangue de uma cabeça cortada percorrendo suas costas e que as mesmas eram enviadas à Belém para identificação.

Parecem ter a altivez de compreender que só podem fazer isso se estiverem cerrando fileiras para localizar outros meninos que estão sepultados pela região do Araguaia. Neste caso ambos os meninos foram vitimas do mesmo algoz. É por isso que secretamente, naquelas noites sombrias da década de 1970 os meninos não-guerrilheiros levavam aos meninos-insurgentes, escondidos, cigarros ou comida. O Eduardo, guerrilheiro sobrevivente do Araguaia, não me deixa mentir.

Muitos irão se incomodar quando as vozes forem amplificadas.

O que me preocupa é que isso venha de setores que dizem defender a civilizatória causa do direito à memória e verdade. Para alguns, até o camponês que se viu obrigado a ser rastejador depois das mais bestiais torturas, se equivale ao General Hugo de Abreu. Aqui, a vitima se transforma em vilão e, os que verdadeiramente têm as mãos sujas de sangue aplaudem a confusão e vão se perpetuando na decrépita condição que a covardia enseja a suas velhices.

Espero que o que vamos escutar daqui para frente dos ex-soldados possa ajudar nas mentalidades daqueles que estão nos quartéis, de todos os seus generais, que a defesa da pátria é também de verdade histórica e tenham em Pery Beviláqua um belo exemplo à ser seguido.

E que não ousem os recalcitrantes de plantão tentar silenciar as vozes que se libertam porque até as mais diminutas pedras do Araguaia criarão ouvidos tal o ensurdecedor barulho que só a consciência avançada é capaz de produzir.

A Comissão Nacional da Verdade, de profunda dimensão democrática, cuja tarefa é proteger o futuro para uma nova geração de meninos só poderá exitar se revelar os punhais e as tramas dos lobos de 31 de Março de 1964.

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