O Pierrot apaixonado

Dias de carnaval, dias de alegria no Brasil. Dias de esquecer tudo o que não seja, e não dê, prazer. Dias em que milhares de Pierrots, Arlequins e Colombinas se espalham em todos os sotaques brasileiros, ocupando as ruas, como uma grande, imensa Comédia.

 
 "Arlequin e Pierrot", Paul Cézanne, 1888  

Mas o Pierrot e o Arlequim, imersos na folia carnavalesca, nem sempre estão esfuziantes de alegria, como mostra a música mais triste de todas as músicas do carnaval (a de Zé Keti): “Oh quanto riso, oh quanta alegria, mais de mil palhaços no salão, Arlequim está chorando pelo amor da Colombina, no meio da multidão.” E mesmo na música de Noel Rosa, “O Pierrot apaixonado que vivia só cantando, por causa de uma colombina acabou chorando, acabou chorando…”

Mas de onde vem essas figuras que habitam nosso carnaval, misturadas a tantas outras? E por que elas carregam essa dupla face, a de um palhaço triste e a de um malandro inquieto? Qual a imensa tristeza presente atrás das máscaras da alegria do carnaval?

No século XVI na Itália, trupes de artistas saiam pelas ruas, entretendo as pessoas, contando suas estórias, fazendo rir, fazendo chorar. A Commedia Dell”Arte italiana era, no começo, caracterizada pela sátira social e ironizava a vida e os costumes das classes dominantes de então. As peças apresentadas eram improvisadas na hora, como o são hoje os repentes e o rap. Ao chegarem nas cidades, se apresentavam em suas carroças ou em palcos improvisados. Mas tinham personagens mais ou menos fixos, que cumpriam certos papeis, como o Pierrot, o Arlequim e a Colombina e seguiam mais ou menos o mesmo roteiro, inicialmente chamado de “canovaccio”. Alguns atores viviam o mesmo papel durante toda a vida.

As representações teatrais das trupes da Commedia dell’Arte sempre ridicularizavam os poderosos, desde reis e rainhas, militares, padres, negociantes e nobres em geral. O esquema de criação era coletivo, havia um roteiro mais ou menos fixo, mas os atores tinham liberdade de improvisação. Muitas dessas trupes carregavam consigo uma pintura bem grande, com uma rua, casa ou palácio, pintados, que servia de cenário.

O nome italiano do Pierrot era Pedrolino, que virou Pierrot na França do século XIX. Ele vestia roupas brancas feitas de sacos de farinha e tinha o rosto pintado de branco. Hoje ele é conhecido com o rosto todo branco e uma lágrima pendendo de um dos olhos. Vivia sofrendo de amor pela Colombina, que amava Arlequim e com isso era ele a principal vítima das piadas dos atores em cena. Pierrot é o “pai” dos palhaços de circo.

Arlequim, assim como Pierrot, era servo de Pantaleão, o mercador de Veneza (que virou uma peça de Shakespeare). Mas Arlequim era um malandro esperto, preguiçoso e insolente, que já entrava em cena saltitando e fazendo movimentos acrobáticos. Era também um debochado e adorava criar confusões com os outros personagens. Usava uma roupa feita inicialmente de muitos remendos coloridos, em losango, e tinha o rosto sujo de barro.

 
"Pierrot", de Pablo Picasso  

A Colombina, também empregada da Corte de Pantaleão, surgia vestida de branco e era disputada pelo amor do Pierrot e do Arlequim. Mas ela, apaixonada pelo Arlequim, cantava e dançava graciosamente para encantá-lo. O Pierrot, triste e tímido, jazia ao lado, sofrendo o seu amor.

Dos três personagens da Commedia dell’Arte, o Arlequim seria o mais “brasileiro”. Brincalhão, divertido e malandro, ele inspirou os blocos carnavalescos, especialmente em Pernambuco, de onde trago lembranças dos carnavais da minha infância, quando as figuras fantasiadas – os papangus – iam de casa em casa, passando pela minha, pedindo dinheiro ou comida e sempre aprontando alguma. Esse duplo caráter dessas figuras carnavalescas (alegres-tristes) sempre me trouxe um misto de medo e atração.

Mas também lembramos do circo e do palhaço em nossos carnavais. Irmão da Commedia dell’Arte, o circo – como o conhecemos hoje – surgiu na Inglaterra, no final do século XVIII. E com ele, o Palhaço (Clown), esse personagem irmão do Pierrot e do Arlequim, com o rosto maquiado, roupas excêntricas e criando situações cômicas, além de comentários engraçados, que o aproximam do público. As improvisações do Clown no circo, como as do Pierrot e do Arlequim, se realizam ali sob os olhos e a participação do público, criando um espetáculo que, mesmo que se repita a cada apresentação, se torna único no momento do espetáculo.

Essas representações populares que vem desde a Commedia dell’Arte sempre são o palco onde acontecem as narrativas das peripécias da vida humana. Com suas alegrias e seus dramas, elas surgem como a grande representação da multidão, como no carnaval brasileiro. É o grande palco onde é apresentada a comédia humana, como dizia o poeta francês Théophile Gautier. Criação de todos, criação de toda uma cultura, o Carnaval, como o Circo e como as representações teatrais de rua, são a grande forma de Creative Commons do povo. Pertence a todos, é Bem e Riqueza de todos.

Leia também a crônica do poeta AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA, que enriquece muito este post. Publicação autorizada generosamente pelo próprio autor.

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