“Cisne Negro”:Marcas da competição

Busca obsessiva leva bailarina a conviver com fantasmas, duplos, lacerações e inveja em filme do diretor estadunidense Darren Aronofsky

                  Há uma precisão coreográfica nos movimentos de câmera do diretor estadunidense Darren Aronofsky, em “Cisne Negro”, que se confundem com os passos do próprio balé. Numa combinação de travellings e cortes rápidos consegue traduzir não só a dança como os conflitos interiores da jovem aspirante a primeira bailarina, Nina Sayers (Natalie Portman). A isto se soma o clima psicológico, criado por uma fotografia expressionista, que através de sucessivos flashbacks, ambientes opressivos e lacerações do corpo mostra sua obsessão para atingir a perfeição.

                 Assim, Aronofsky e seus roteiristas Andres Heinze, John McLaughlin e Mark Heyman transformam a fantasia “O Lago dos Cisnes”, composta por Tchaikovsky (Piotr Il´yich, 1840/1893), e lançada em 1877, em Moscou, num drama psicológico. A tragédia original do príncipe Siegfried e sua amada Odette, enfeitiçados pelo mago Rothbart e a feiticeira Odile, ganha contornos modernos. Ainda que em seus instantes de delírio, Nina se veja ameaçada pela ave de rapina e seu duplo Odile/Cisne Negro, conservando, portanto, a base do balé de Tchaikovsky, nada mais resta do original. Inexiste uma evolução dos quatro atos. O que prevalece em “Cisne Negro” é a esquizofrenia de Nina.

               Com este tratamento, Aronofsky aproxima-se do terror psicológico de Roman Polanski em “Repulsa ao Sexo”, em que Carol Ledoux (Catherine Deneuve) foge ao contato com a realidade. Nina vive para o balé, numa tentativa desesperada para alçar-se ao Olímpo das primeiras bailarinas. Seu modelo é a autodestrutiva Beth Macintyre (Winona Ryder), em fim de carreira. Os encontros entre ambas são marcados por repulsa, inveja, competição. E quanto mais Nina tenta apegar-se ao real, mergulha nas sombras, cheia temores, projetados por seu duplo, que encarna as bailarinas que a aterrorizam e, portanto, o seu lado “cisne negro”.

             No entanto, ela mantém uma couraça semelhante à de Carol, que precisa ser rompida. A de Carol emerge por meio de fendas nas paredes, ameaça de toques masculinos, medo de deixar o quarto, a de Nina pela busca sucessiva do banheiro, do camarim, do quarto, onde seus fantasmas, duplos, brotam. E se manifestam nas feridas e vômitos constantes. Mas principalmente nas lacerações nas costas. Carol tem horror ao sexo,

             Esta questão não aparece em Nina até que ela adentra o restrito círculo das primeiras bailarinas. Sua couraça a protege de contatos, investidas causadas pela competição da aspirante Lily (Mila Kunis) e a voracidade sexual do diretor Thomas Levy (Vincent Cassel). É então que sua armadura se mostra frágil.
Nina luta para
romper couraça
Ela desabrocha, ainda que por meio de estimulantes, para descobertas antes inimagináveis. E desta forma sua sexualidade desabrocha, torna-se outra, menos suscetível à manutenção da couraça. Entretanto, Aronofsky desconstrói a visão freudiana do personagem: romper sua couraça só radicaliza sua obsessiva busca da perfeição. Se antes, ela não era violenta, a exemplo de Carol, para livrar da concorrente torna-se capaz de tudo. É quando o tema central de “Cisne Negro” aparece: até que ponto os fantasmas e duplos não são criações da doentia competição capitalista entre bailarinas e bailarinas, bailarinos e bailarinos, em busca do fugaz estrelato?

           O mesmo se dá em todas as outras profissões, em feroz competição no mercado de trabalho. Numa sequência  que bem o ilustra, Thomas pede a Nina para se soltar, ser menos técnica. Este é, sem dúvida, o agir mecânico que se ajusta para atingir melhor resultado, mas não traduz o humano. O/a bailarino/a é mais do que o corpo; ele/a tem que transmitir emoção e beleza para o espectador e Nina não o fazia. Dominada pela mãe Erica (Barbára Hershey), que projetava nela sua redenção, ela é viciada em trabalho, e purgava devido a isto. Na mais aterrorizante sequência do filme, ela vê na autodestrutiva Beth uma projeção de si própria no futuro.

           Assim, como em “O Lutador” a respeito das lacerações do corpo e do espírito do ex-profissional de luta-livre, Randy “Carneiro” Robinson (Mickey Rourke), Aronofsky traz para o espectador sua visão sombria da luta pelo Olimpo. Seus contornos são difíceis de definir. Pode ser tanto uma imposição do meio, quanto projeções freudianas ou a capacidade de o sistema capitalista transformar a luta sadia pela perfeição numa insanidade. Cada espectador tentará encontrar a sua explicação. Não poderá escapar, no entanto, da cruel sentença: há um preço a pagar para se permanecer no Olimpo. Talvez o de Nina seja maior do que os dos BigBrothers, para os quais a exposição é um fim em si. O dela vai além: exige anos de exercícios e autocontrole e os refletores podem cegar.

Cisne Negro”. (“Black Swan”). Drama Psicológico. EUA. 2010. 107 minutos. Música: Clint Mansel. Fotografia: Mattew Libatique. Roteiro: Andres Heinz, Mark Heyman, John McLaughlin , baseado em história de Andres Heinz. Direção: Darren Aronofsky. Elenco: Natale Portman, Vincent Cassel, Mila Kunis, Winoma Ryder.

(*) Candidato ao Oscar 2010: Melhor Filme, Diretor, Atriz, Fotografia, Montagem.

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