“Cisne Negro”:Marcas da competição
Busca obsessiva leva bailarina a conviver com fantasmas, duplos, lacerações e inveja em filme do diretor estadunidense Darren Aronofsky
Publicado 10/02/2011 16:08
Há uma precisão coreográfica nos movimentos de câmera do diretor estadunidense Darren Aronofsky, em “Cisne Negro”, que se confundem com os passos do próprio balé. Numa combinação de travellings e cortes rápidos consegue traduzir não só a dança como os conflitos interiores da jovem aspirante a primeira bailarina, Nina Sayers (Natalie Portman). A isto se soma o clima psicológico, criado por uma fotografia expressionista, que através de sucessivos flashbacks, ambientes opressivos e lacerações do corpo mostra sua obsessão para atingir a perfeição.
Assim, Aronofsky e seus roteiristas Andres Heinze, John McLaughlin e Mark Heyman transformam a fantasia “O Lago dos Cisnes”, composta por Tchaikovsky (Piotr Il´yich, 1840/1893), e lançada em 1877, em Moscou, num drama psicológico. A tragédia original do príncipe Siegfried e sua amada Odette, enfeitiçados pelo mago Rothbart e a feiticeira Odile, ganha contornos modernos. Ainda que em seus instantes de delírio, Nina se veja ameaçada pela ave de rapina e seu duplo Odile/Cisne Negro, conservando, portanto, a base do balé de Tchaikovsky, nada mais resta do original. Inexiste uma evolução dos quatro atos. O que prevalece em “Cisne Negro” é a esquizofrenia de Nina.
Com este tratamento, Aronofsky aproxima-se do terror psicológico de Roman Polanski em “Repulsa ao Sexo”, em que Carol Ledoux (Catherine Deneuve) foge ao contato com a realidade. Nina vive para o balé, numa tentativa desesperada para alçar-se ao Olímpo das primeiras bailarinas. Seu modelo é a autodestrutiva Beth Macintyre (Winona Ryder), em fim de carreira. Os encontros entre ambas são marcados por repulsa, inveja, competição. E quanto mais Nina tenta apegar-se ao real, mergulha nas sombras, cheia temores, projetados por seu duplo, que encarna as bailarinas que a aterrorizam e, portanto, o seu lado “cisne negro”.
No entanto, ela mantém uma couraça semelhante à de Carol, que precisa ser rompida. A de Carol emerge por meio de fendas nas paredes, ameaça de toques masculinos, medo de deixar o quarto, a de Nina pela busca sucessiva do banheiro, do camarim, do quarto, onde seus fantasmas, duplos, brotam. E se manifestam nas feridas e vômitos constantes. Mas principalmente nas lacerações nas costas. Carol tem horror ao sexo,
Esta questão não aparece em Nina até que ela adentra o restrito círculo das primeiras bailarinas. Sua couraça a protege de contatos, investidas causadas pela competição da aspirante Lily (Mila Kunis) e a voracidade sexual do diretor Thomas Levy (Vincent Cassel). É então que sua armadura se mostra frágil.
Nina luta para
romper couraça
Ela desabrocha, ainda que por meio de estimulantes, para descobertas antes inimagináveis. E desta forma sua sexualidade desabrocha, torna-se outra, menos suscetível à manutenção da couraça. Entretanto, Aronofsky desconstrói a visão freudiana do personagem: romper sua couraça só radicaliza sua obsessiva busca da perfeição. Se antes, ela não era violenta, a exemplo de Carol, para livrar da concorrente torna-se capaz de tudo. É quando o tema central de “Cisne Negro” aparece: até que ponto os fantasmas e duplos não são criações da doentia competição capitalista entre bailarinas e bailarinas, bailarinos e bailarinos, em busca do fugaz estrelato?
O mesmo se dá em todas as outras profissões, em feroz competição no mercado de trabalho. Numa sequência que bem o ilustra, Thomas pede a Nina para se soltar, ser menos técnica. Este é, sem dúvida, o agir mecânico que se ajusta para atingir melhor resultado, mas não traduz o humano. O/a bailarino/a é mais do que o corpo; ele/a tem que transmitir emoção e beleza para o espectador e Nina não o fazia. Dominada pela mãe Erica (Barbára Hershey), que projetava nela sua redenção, ela é viciada em trabalho, e purgava devido a isto. Na mais aterrorizante sequência do filme, ela vê na autodestrutiva Beth uma projeção de si própria no futuro.
Assim, como em “O Lutador” a respeito das lacerações do corpo e do espírito do ex-profissional de luta-livre, Randy “Carneiro” Robinson (Mickey Rourke), Aronofsky traz para o espectador sua visão sombria da luta pelo Olimpo. Seus contornos são difíceis de definir. Pode ser tanto uma imposição do meio, quanto projeções freudianas ou a capacidade de o sistema capitalista transformar a luta sadia pela perfeição numa insanidade. Cada espectador tentará encontrar a sua explicação. Não poderá escapar, no entanto, da cruel sentença: há um preço a pagar para se permanecer no Olimpo. Talvez o de Nina seja maior do que os dos BigBrothers, para os quais a exposição é um fim em si. O dela vai além: exige anos de exercícios e autocontrole e os refletores podem cegar.
“Cisne Negro”. (“Black Swan”). Drama Psicológico. EUA. 2010. 107 minutos. Música: Clint Mansel. Fotografia: Mattew Libatique. Roteiro: Andres Heinz, Mark Heyman, John McLaughlin , baseado em história de Andres Heinz. Direção: Darren Aronofsky. Elenco: Natale Portman, Vincent Cassel, Mila Kunis, Winoma Ryder.
(*) Candidato ao Oscar 2010: Melhor Filme, Diretor, Atriz, Fotografia, Montagem.